
Elsa

Luciane da Rosa Lengler
12 min de leitura
Ela chegou de visita na nossa casa, acredito que assim foi para estar perto do filho na hora da partida, ou sei lá qual o desígnio envolvido nesta escolha. Só sei que, muitos anos depois, seu marido e meu avô paterno teria o mesmo destino, desencarnar em nossa casa.
Apesar de eu, na época, contar com apenas três anos e meio de idade, lembro da alegria de vê-la chegando, com sua mala rígida de couro marrom, a mesma que meu avô trouxe quando foi passar seus últimos dias em nossa casa, muitos anos depois, com abertura na parte superior e alças curtas, carregada ao fundo com poucos pertences, talvez um ou dois vestidos de lã grossa, dois pares de meias longas de lã grosseira, um conjunto de roupa de baixo de algodão, quem sabe duas ceroulas e duas blusas sem botão.
O pesado casaco de lã vinha à mão. Nem um deles imaginou que o casaco de boa lã e de corte fino, mas antiquado, passaria, em poucas horas, como a única herança que a minha mãe receberia dela.
Em cima de tudo, e é do que mais me lembro, umas quantas laranjas soltas, colhidas de seu pomar na noite anterior e colocadas com muito cuidado na mala, seu presente para nós, os netos.
Além das laranjas, provavelmente trouxesse um vidro de mel ou “schimier”, como ela dizia em alemão, talvez comprado na venda de uma prima da minha mãe, vizinha e amiga do casal, isso na cidade de Taquari, distante 120 km da nossa Viamão, onde residíamos num bairro pobre e proletário, para evocar no filho querido a delicada lembrança dos sabores da casa materna. Isso eu imagino, não sei por quê. As lembranças das crianças não são muito confiáveis, são uma mistura do que viveram e do que a mente fantasiosa criou para lidar com o trauma. Mas enfim, é assim que lembro dessa doce visita da vó Elsa.
Ela chegou num dia de inverno, a pequena casa de madeira muito modesta, cujo o único chuveiro ficava exterior, ao lado da porta da cozinha, no único banheiro bem pequeno e mal calafetado, era em tudo diferente de sua casa elegante e de alvenaria.
Também não haveria passeios nem visitas, apenas a convivência familiar, o encontro com os netos, a voz do filho, meu pai, e a energia da nora, minha mãe, a distância da casa e da amarga dor do filho morto, cujo desgosto aumentava todo o dia, agigantando-se como um pão crescendo no verão, desmentindo o senso comum de que o tempo cura a amargura.
A minha mãe a recebeu com alegria, se queriam bem as duas mulheres, e a minha avó vinha tão pouco nos visitar que, acredito, a nora estava genuinamente feliz com a presença doce da mãe do meu pai em nossa casinha. Penso que ela entrou no lar do filho, beijou com um beijo só cada neto, meus dois irmãos e eu (a minha irmã mais nova nasceu bem depois) e se sentou com um gemido, esticou as pernas grossas e doloridas e, finalmente, imitou um sorriso. Fingiu um sorriso, pois era sabido entre toda a família que, desde a perda do primogênito amado, ela nunca mais sorrira.
Me parece sentir o doce aroma das laranjas e da sensação de estarmos felizes e, esganados, animados para sorver a doçura das frutas trazidas pela avó triste, mas amorosa.
A noite chegou cedo, era uma terça ou quarta-feira de junho, fazia muito frio aquele ano, acho que a minha mãe pôs a cozinhar uma grande panela de sopa, prato barato e, por isso, recorrente na nossa mesa. Acho que ela deve ter percebido a agitação do filho um pouco antes do jantar ser servido e entendeu que lhe faltava o aperitivo, vício triste da bebida, o qual meu pai e meu avô compartilhavam. Viu o filho sair discretamente e voltar não muito depois, já não tão tímido, falando mais alto e com uma empolgação que não lhe era peculiar.
Tudo isso ela percebeu em silêncio e com tristeza, sabia do vício do meu pai, ele começou a beber com onze anos de idade, sabia dos empregos perdidos nas crises mais longas de alcoolismo, das brigas com a minha mãe, no desmazelo e na dor mal disfarçada das ressacas morais. Ela reconhecia no filho as razões para este vazio só preenchido com cigarro e bebida.
Ela, por seu lado, também carregava muitas dores, todas elas sem remédio e sem alívio. Também ela tinha um vazio imenso, cavoucado no seu íntimo por um casamento infeliz, por traições, abandonos, truculência. Porém, nenhuma destas dores gravadas no seu íntimo durante anos lhe tirara o riso, o amor pela jardinagem, a vontade de cantar e de cozinhar doces de frutas em calda.
Esta força só a abandonou quando o filho mais velho desencarnou, deixando seu coração partido sem remédio, vítima que foi de um acidente há alguns anos. Dizem que era um homem lindíssimo, um jovem promissor, piloto comercial, pai de três crianças e um filho muito amoroso, cujo o avião despencara do céu por um erro de distribuição do peso da carga. Por conta desta dor, ela nunca mais sorriu, carregando uma tristeza que a envolvia e que se podia enxergar no olhar vazio, na fala mansa e baixa, no cabelo preso num coque baixo e mal feito acima da nuca, nos vestidos simples e na ausência total de vaidade, sinal das mulheres tristes.
Também, em razão da morte prematura do filho, meu avô nunca mais foi o mesmo, ele que já não tinha temperamento fácil, ficou ainda mais difícil, mais mulherengo, mais beberrão e frequentando mais as mesas de jogos, também marcando a família pela cicatriz da perda, da dor, tudo somado e misturado com as outras mazelas, vícios e dores pré-existentes nos filhos sobreviventes e no casal enlutado.
Porém, a dor da minha vó estava por terminar, com uma promessa insuspeitada e um vislumbre do paraíso.
Isso ela contou sem suspeitar do verdadeiro significado que, depois, aos cochichos, as pessoas repetiam no seu velório. Quem já teve uma grande saudade apaziguada por um reencontro ainda que breve com o objeto da saudade, pode medir a emoção que escapava das palavras da minha vó enquanto relatava que, ao colher as laranjas em seu pomar para trazer para nós, o dia já escurecia. Foi então que ela, bem perto de onde estava, no lusco-fusco da tarde, avistou seu querido filho por quem chorava todos os dias e cuja a saudade só aumentava e a consumia.
Neste entardecer, o que ela viu a encheu de alegria, o filho a chamava com um lindo sorriso e um aceno de mão: vem, mãe, vem... Por um breve instante de muita felicidade e júbilo - calculo como um sentimento que só uma mãe órfã de filho sentiria ao rever seu amado - ela esqueceu que ele já partira e foi feliz ao seu encontro.
Ela contou para a minha mãe da frustração que sentiu ao se aproximar do filho adorado e ver que se tratava tão somente de um galho de laranjeira balançando ao vento e que tudo não passara de uma ilusão de ótica, disse ela, uma visão provocada pela saudade imensa que ela nutria do primogênito. Mesmo assim, quando falava sobre este instante de alegria, seu rosto se iluminava, como se a saudade tivesse amainado um pouquinho apesar da ilusão momentânea.
Um ou dois dias depois da chegada da minha vó em nossa casa, numa noite fria de quinta-feira, haveria uma novena na igrejinha da localidade. Como fizesse muito frio, minha mãe colocou eu e o meu irmão de 4 anos na mesma cama, acho que era a cama dos meus pais, e nos cobriu bem para ficarmos quentinhos.
Ela, o meu pai e meu irmão mais velho foram para a capelinha, enquanto nós três dormimos juntos a última noite da triste vida da minha avó, abraçados nela, disfrutando do calor e da doçura de seu corpo cheinho e, quem sabe, ouvindo-a rezar ou murmurar palavras de amor ou alguma canção de ninar em alemão para nós.
Quando amanheceu e minha mãe ia sair para trabalhar, passou no quarto em que nos encontrávamos os três, e encontrou minha avó já desencarnada, ladeada por mim e meu irmão que dormíamos abraçados nela. Foi quando minha mãe percebeu que, para além da rigidez nas faces, ela apresentava um leve sorriso e uma expressão muito linda de júbilo.
Ninguém teve dúvidas de que a partida dela deste mundo foi feliz e que o filho adorado estava ao seu lado, conduzindo esta mãe que, afinal, atendera-lhe ao chamado para caminhar com ele para um lugar de paz, de luz e de reencontros felizes.
Até hoje, esta história é contada e recontada aos netos e bisnetos, porque transmite uma verdade que nos vem como uma herança preciosa recebida de nossa avó Elsa: a certeza do reencontro com aqueles a quem amamos em uma outra dimensão e que as dores sofridas nesta vida encontrarão consolo nos braços daqueles a quem amamos.
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