
Tito

Luciane da Rosa Lengler
12 min de leitura
O Tito era um homem apaixonado. Nem poderia ser de outra forma, a Vera, a quem ele amou com paixão, é uma linda mulher, pequenininha, delicada, com uns olhos azuis tão lindos quanto o céu. Quando ela fala, a gente quer parar pra escutar, porque a voz é doce e tem melodia. Acho que a melodia vem de seu talento como pianista, pois ela fala como quem dedilha suavemente o piano.
A história de amor deles é linda como um romance de ficção, com todos os ingredientes para um sucesso de público, um caso de amor ardente e de perdição, proibido, feito de encontros furtivos, de beijos roubados, muitos beijos roubados, castigos impostos, uma fuga frustrada, ameaça de morte, muito choro e muita paixão, para somente depois de muitos anos de espera e amor platônico, conseguirem a redenção para serem felizes para sempre.
Só que para sempre é muito tempo...
E, por ser muito mais velho que ela, a hora do amor da Vera partir chegou, deixando ela de coração estraçalhado. Desde a morte do Tito, muitos anos passados, ela ainda chora quase diariamente, não de tristeza, diz ela, mas de saudade. Ela não reclama da vida, a vida dela com o Tito foi muito boa.
Aliás, ela diz que a vida só foi realmente boa depois do Tito. Juntos, eles tiveram duas filhas, neto e netas, todos perfeitos e amorosos, motivos de orgulho e alegria, fizeram bons amigos, construíram um legado de honradez e fundamento para o futuro. Ele a presenteou, tão logo pode, com um piano para tocar na sala de estar as canções que encantavam a família e enchiam o coração dele de orgulho da menina que ele chamava de minha gatinha e que havia se tornado sua doce mulher.
Mas, apesar das lindas lembranças construídas em décadas de um casamento feliz e harmonioso, o vazio da vida dela sem ele é irremediável, até quando ela fala o nome dele “Tito”, os lindos olhos azuis já se molham, uma lágrima fica brincando no cantinho e, se cair, muitas virão atrás, encharcando o rosto que ele adorou e que não aceitaria ver sofrer se pudesse evitar.
Pois para ela, este homem apaixonado que, muitos anos antes descobrira um jeito de falar diretamente ao coração da jovem, encontrou lá no céu um modo de diminuir a tristeza pelo mesmo caminho. Vou contar a história toda.
Tudo começou no início da década de 50. Um dia, os dois se cruzaram e, por um olhar apenas, foram fulminados por uma paixão que, imediatamente, se tornou um escândalo municipal pela diferença de idade entre eles. Ela, menina moça, ele, homem feito.
A pequena cidade, antevendo o romance que nascia, fez do caso o único assunto, todos atentos aos movimentos dos infelizes pombinhos que ficaram proibidos até de se olharem. Qualquer movimento deles era acompanhado por olhos curiosos e maledicentes, impedindo qualquer aproximação entre os dois. Para complicar, a Vera morava com uma tia solteirona que, logo que percebeu que a menina estava apaixonada, começou a agir para desencorajar qualquer esperança.
Mas o amor não aceita obstáculos, então, nesta fase longa e difícil em que sequer podiam trocar uma palavra e, muitas vezes nem um olhar mais demorado, quando ele queria falar de amor, deixava uma rosa vermelha em algum ponto estratégico que ela conhecia e encontraria.
Essa foi a única comunicação possível naqueles primeiros tempos de romance: uma rosa deixada em um muro discreto ou num peitoril de janela. Nenhuma palavra, nenhum bilhete, nada, só a rosa vermelha que ele beijava antes de repousar com cuidado e que esperava que ela, ao recolher, beijasse para receber ali o beijo sentido enviado na maciez das pétalas.
Ela, recolhendo a rosa, adivinhava tudo o que continha a mensagem, ela entendia que ele havia percebido o seu olhar triste na saída da missa domingueira, ou que aprovara o novo vestido de saia azul de tafetá rodado e que pensara que combinava com seus olhos azuis, ou que o recital de piano que ela apresentara e que ele assistira o enchera de paixão, enfim, o recado escondido em cada pétala do botão de rosa pelo simples encontro da flor e ela, então, se via feliz, sentindo-se a mais amada das mulheres renovava a esperança de, um dia, ouvir da boca dele as palavras de afeição que vinham embaladas em tão delicado envelope. Nessa noite, ela sonharia com uma vida a dois, sem segredos escondidos nas pétalas vermelhas.
Conforme a Vera foi crescendo, finalmente puderam se aproximar um pouco mais e trocar algum beijo furtivo ou segurar as mãos durante um filme na sala de cinema à noite, para onde ela se esgueirava gazeando o curso noturno e onde ele a esperava ansioso, vestido de terno de linho branco bem passado, galante e romântico.
Nesta fase, as rosas, encontradas por ela no dia seguinte, falavam do gosto do beijo, do calor da mão dela entre as dele ou do maravilhoso perfume que ele sentia ao encostar a cabeça no ombro dela e cheirar seus cabelos castanhos. Ela se orgulha de que sempre soube adivinhar a mensagem que a rosa trazia, bastava recordar o último encontro, prescrutar na lembrança do que viu nos olhos dele e, pronto, lá estava a mensagem que ela deveria receber.
Quando, finalmente, venceram tudo e todos e, noivos de anel no dedo e consentimento dos pais dela, puderam iniciar a vida a dois tão sonhada por longos cinco anos de amor platônico e impossível.
As rosas, agora entregues diretamente das mãos dele para as dela, vinham em lindos buquês enfeitados com mosquitinhos brancos e embrulhados em papeis elegantes, o beijo era entregue diretamente aos lábios dela e a mensagem não mais precisava ser adivinhada, vinha escrita em um bilhete ou cartão e, algumas mais ardentes, ditas ao ouvido, que a fazia tremer de emoção e acanhamento.
O amor e a paixão nunca diminuíram mesmo em mais de quarenta anos de casados, ao contrário, aumentaram muito, ela continuou tímida e recatada, ele continuou ardente e galante, até que o inevitável momento da despedida chegou e ele foi para o plano espiritual.
A partida dele machucou muito a alma dela, ela reconhece que nunca soube viver sem ele, não sabia mesmo antes de conhecê-lo, e é como se a existência dela tivesse começado no dia em que, passeando pela rua, seus olhos cruzaram com os dele e reconheceram algo que vinha de outras vidas, algo muito grandioso e inexplicável.
Por isso, o sofrimento que ela experimentou era visível, o piano se calou, ela chorava muito deixando as filhas e demais familiares preocupados. Um dia, uma das filhas forçou a mãe a acompanhá-la num evento qualquer, uma festa onde algumas pessoas seriam homenageadas por alguma atuação de destaque, enfim, uma festa aleatória.
A Vera foi contrariada, apenas para não preocupar mais a filha que já andava nervosa em ver a aflição da mãe, mas seu rosto não escondia sua tristeza e a vontade de voltar voando para a casa dela e do Tito, ainda que ele não a estivesse esperando lá com seu sorriso doce e olhar atrevido de homem apaixonado.
Para a Vera, o evento estava sendo um sacrifício, ela tinha vontade de chorar o tempo todo e não sabia como esconder os sentimentos que teimavam em se mostrar em público, uma exposição que ela não desejava, queria mesmo era estar em casa chorando à vontade, sem ter que enfrentar os olhares curiosos das pessoas.
Felizmente, os caminhos da espiritualidade nem sempre são óbvios. Assim, as homenagens iniciaram e, além de uma placa comemorativa, os homenageados recebiam uma rosa vermelha. Foi aí que o Tito teve a oportunidade de falar de amor para a Vera, desta vez, precisando soprar no ouvido de uma desconhecida o comando para agir em favor de sua amada.
Foi assim: uma moça que a Vera não conhecia e que não conhecia a Vera, após ser homenageada, carregando a rosa vermelha na mão, parou na frente dela e lhe entregou a flor. A Vera, surpreendida e muito emocionada, segurou a rosa com muita força e, apesar de lhe parecer óbvio do que se tratava, perguntou a razão do gesto tão delicado.
A moça disse que não sabia explicar o motivo, mas disse que vendo a tristeza nos olhos dela, sentiu uma vontade imensa de levar-lhe a rosa, era como se soubesse que esta atitude seria alívio para a dor tão sentida daquela bela e infeliz senhora.
A Vera logo soube que a rosa vinha do Tito e, tranquilamente, reestabeleceu a comunicação com ele por este meio. Depois desse dia, muitas vezes pede em oração que ele abrande a saudade ou alguma dor enviando-lhe uma rosa e nunca falha. Dos meios mais eventuais lhe chega às mãos a esperada mensagem do céu.
Em outros momentos, a rosa aparece sem ser solicitada e ela sabe que ele está com saudades ou quer que ela fique bem ou qualquer outro recado, igual como era nos velhos tempos.
Essa comunicação retomada dos momentos mais ingênuos e puros da sua mocidade tem sido o consolo e a certeza para a Vera de que o Tito a aguarda em algum lugar, não longe daqui, e a protege e cuida para que ela não sofra demais até poder recebê-la para juntos seguirem juntos novamente para além da vida. Mas, como na juventude, será no tempo certo.
Eu conhecia esse conto romântico desde criança, porque minhas tias gostavam de contar sobre o amor proibido que venceu uma cidade inteira pela perseverança e que deixava como legado o exemplo da força potente que superou tantos obstáculos para se concretizar em uma família e dar início a uma hereditariedade fundamentada em tal solidez de sentimentos.
Na década de noventa quando vim morar em Encantado, conheci estes dois personagens que fizeram parte do imaginário da minha infância e pude ver que nada do que me contaram foi inventado ou fantasiado.
Na ocasião, eles já iam com uns trinta anos de casados, mas o trato dele com ela era de recém casado, os dois se olhavam como se olham os namorados, ele a provocava e a fazia rir o tempo todo como se estivessem permanentemente em lua de mel.
Há pouco tempo, fui convidada a ouvir sobre a vida deles pela voz dela para, talvez, escrevê-la. Concordei, porque me encantou a chance de oferecer para a Vera o registro da história deles, apenas para resguardar a herança de uma fundação familiar que ensina sobre perseverança para as gerações futuras, que são e serão privilegiadas pela base sólida de um amor que não tem início e nem fim nessa vida.
Posso dizer que me emocionei várias vezes enquanto, ouvindo e escrevendo, imaginava a pequena Encantado dos anos cinquenta, as moças de saia rodada e os rapazes de terno flertando na praça da Bandeira sobre os olhares vigilantes dos mais velhos, o charme e a inocência daqueles anos de ouro, lugar e ocasião em que minha mãe e tias também andavam por essas mesmas ruas, elas também vivendo seus sonhos de moças.
Como escrevo sobre pessoas que já se encontram no plano espiritual, antes de iniciar a escrever uma história ouvida, eu sempre peço licença àquele que partiu para entrar na sua privacidade e revelar a outros sua história, seus últimos momentos e, muitas vezes, até alguma intimidade.
Eu entendo como negativa se, mesmo tendo ouvido o que algum familiar me conta, na hora de escrever não me vem ou não me ocorre alguma inspiração. Para mim, fica estabelecido que o personagem não quer ser exposto e, então, eu respeito.
Com o Tito foi diferente. Eu, antes de ir ouvir a história dele e da Vera, desta vez contada nos detalhes por ela, perguntei em breve oração ao Tito se ele aceitaria essa intromissão. Quando estava saindo de casa para ir à casa deles, passei por um vaso de rosas que eu mesma tinha colhido do meu jardim e pensei: que tal se eu levasse uma rosa vermelha para a Vera?
Até então, eu jamais ouvira falar nas rosas e suas mensagens. Só fiquei sabendo disso por ela. Mas a intuição de escolher uma flor e levar para aquela senhora tão querida e que iria me deliciar com uma bela crônica foi muito forte, a tal ponto que, quando ouvi dela que ele ainda envia rosas, tive certeza de que eu deveria ter levado a flor para ela.
Mas não levei. Eu pensei que uma rosa, colhida assim do jardim, era pouco e eu passaria vergonha com um mimo tão sem valor.
Errei, mas espero que o Tito me perdoe, porque foi por pura ignorância.
Agora que sei que faz setenta e um anos que o papel de carta desses dois é feito de pétalas de rosa, nunca mais quero deixar de entregar para ela um recadinho, um mimo de amor que mantenha o coração dela aquecido e esperançoso de, no momento certo, cair nos braços dele novamente e reviver esse amor de novela, lindo e duradouro como deveriam ser todos os amores.
Adoro acreditar que a distância física imposta agora pela partida dele para outra dimensão seja novamente superada pelo mesmo artifício e me alegra que ela se aproprie desta percepção espiritual de que, de algum lugar, ele manda flores, usando o mesmo recurso com que ele oferecia alívio e esperança para quando ela, menina moça apaixonada, sofria amargamente por ser afastada dele por pessoas incapazes de reconhecer um caso tão explícito de reencontro de almas.
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