Adalberto

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Luciane da Rosa Lengler

Luciane da Rosa Lengler

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A gente só pensa em quem realmente foram os nossos pais, avós, tios e em tudo o que os levou a serem quem acabaram por ser ou se tornarem quando se envelhece e se equaciona a própria vida.
Pelo menos é o que acontece comigo, à medida que envelheço e vou realizando os balanços de ganhos, perdas, chegadas e partidas da minha vida, também vou entendendo as dinâmicas daqueles que vieram antes de mim. Isso e um pouco de compaixão por mim e meus erros e acertos, indulgência que, inevitavelmente, acabo por estender àqueles que vieram antes mim e, de alguma forma, imprimem o meu ser me moldando, para o bem ou para o mal, no que vou me tornando à medida que faço a minha caminhada terrena.
O meu pai, durante boa parte da vida, foi um poço de amargura, dores emocionais que, naqueles tempos, eram ignorados pela medicina, pelas comunidades e até pela religião. Hoje, acredito que ele sofresse de uma depressão gravíssima, sem remédio na ocasião, cuja enfermidade ele tentava amenizar pelo abuso do álcool e do cigarro.
Obviamente, estes paliativos não resolviam e, pior, exacerbavam um eventual mau gênio que, na verdade, ele não tinha e escondiam um homem assustado e pleno de dores, cujo emocional bloqueava o amor que o rodeava e que ele não era capaz de reconhecer.
Nada disso eu percebia enquanto ele se entregava ao vício. Para mim, se tratava apenas de uma pessoa fraca que não mudava de hábito porque não nos amava suficientemente.
Pois bem, quando já se livrara do vício da bebida após um tratamento compulsório, com os filhos já adultos, recebeu um diagnóstico de câncer que lhe indicou que viveria, com sorte, mais uns cinco anos.
Neste momento, aquele homem que nunca reconheceu o amor e a compaixão em toda a sua vida - bloqueios que a depressão cria, impedindo o doente de ver e se apropriar do que há de bom ao seu redor – em sua fragilidade, passou a perceber que era amado, apesar da forma como conduzira sua vida até a doença chegar.
O meu irmão mais velho, entendendo a urgência da vida que tinha prazo para se extinguir, realizou o sonho da vida do meu pai: levou-o a morar perto do mar. Assim, este filho amoroso oportunizou a ele, enquanto a saúde permitiu, a possibilidade de morar na beira da praia, numa localidade de pescadores, onde ele pôde gozar da liberdade de ir e vir ao mar todos os dias, pescando e, na volta, limpando e preparando peixes que depois nos presenteava cheio de orgulho, vivendo uma vida que sempre fora seu sonho e que se concretizara pela generosidade amorosa do filho.
Também, durante os piores momentos da doença, das quimioterapias terríveis e nauseantes e das dores aterrorizantes, sempre havia alguém ao seu lado confortando, cuidando, amparando. Acredito que ele nunca havia se percebido como merecedor de todo esse zelo e compaixão.
Durante a doença, de apenas um neto que conhecia e amava, passou a ter três netos e duas netas, todos perfeitos e saudáveis, o que se via, enchia seu coração de alegria. Levou-me ao altar no dia do meu casamento, estava fraco, mas muito feliz e emocionado, qualquer um poderia ver.
E assim foram seus últimos anos de vida, em que a doença se impusera em forma de dor e tratamentos excruciantes, mas que, em algum ponto do coração deste homem, uma luz o iluminou, fazendo-o reconhecer o amor que o rodeara a vida inteira e que ele não percebera, cego de depressão e sofrimentos mentais que ninguém diagnosticara.
Bem perto de seu desencarne, ele acordou um dia, muito emocionado e contou pra minha mãe o seguinte sonho:
“eu estava sozinho em um barco no mar, era um dia bonito, a água estava azul e tudo ia muito bem. Eu estava sem medo. Assim, do nada, o tempo começou a mudar, a água foi se encrespando, um vento começou a soprar, primeiro de leve, depois mais forte, agitando o pequeno barco. Até aí, não tive medo, por que conheço o mar, sei o que fazer. Mas chegou um certo ponto em que olhei para a água do mar, ela começou a ficar suja, escura, enlameada e o vento foi ficando mais forte. O barco começou a sacudir com força, eu sabia que ia morrer ali, não tinha como escapar daquela fúria que vinha sobre mim. Até que uma onda começou a crescer na proa do barco, me deixando apavorado, eu gritei, pedi misericórdia, chamei por Deus e mesmo assim, o barco não resistiu e virou. Quando eu já havia perdido as esperanças, jogado no mar me segurando em um pedaço quebrado do barco, o tempo se acalmou, a água limpou, o mar voltou a ficar sereno e eu percebi uma mão estendida pra mim. Eu segurei aquela mão e eu já não era um náufrago. Me vi com uma roupa branca, limpa e brilhante. Ao meu lado, estava Jesus.”
Então, ele olhou pra minha mãe, muito emocionado, e finalizou:
-Veja só, Jesus me salvou.
A doença avançou lentamente até, o estado de saúde dele foi piorando, as dores agravando, não havia esperanças de cura nem de alívio. A enfermidade já havia alcançado o pulmão, a respiração estava cada vez mais difícil e, uma certa noite, ele foi levado ao hospital por minha mãe e meu irmão mais velho.
Ele ficou numa sala de emergência, agonizante, não havia mais o que fazer. Pareceu-nos que ele esperou a chegada do meu irmão do meio, eles sempre tiveram uma ligação mais forte, parecidos fisicamente, percebia-se uma conexão diferente entre os dois. Quando este chegou apressado, entendendo a gravidade do momento, ficaram só os dois ali, mas ele estava partindo, louco de dor e aflição respiratória, pediu por socorro, pediu que o filho abreviasse seu sofrimento, implorou por misericórdia. As enfermeiras vieram e o levaram dali, deixando a cortina da baia da emergência aberta e meu irmão sentado, desolado por tudo o que vira e pela impotência diante da dor e do desespero.
Ele estava sentado de frente para o corredor, chorando e rezando, pedindo pelo fim do sofrimento do nosso pai, pelo alívio do desencarne.
Mas qual não foi sua surpresa quando vê passar pelo mesmo corredor por onde o pai agonizante fora levado de maca, minutos antes, em confronto com a morte, nosso pai, que agora caminhava lépido e fagueiro, mirando a frente com um olhar de contemplação e júbilo, quase saltitando. Isso contou-nos, ainda incrédulo do que vira o nosso irmão, que o pai caminhava com a agilidade de passos com que um jovem marcha para chegar logo a uma festa onde é esperado e já de longe é saudado e acolhido.
E foi assim que o nosso pai andou para a eternidade, deixando para nós esta imagem que projetamos ter sido uma boa morte, uma passagem para um lugar melhor em que era esperado e reverenciado com amor, um lugar onde, desde a partida do prédio do hospital e diante do olhar incrédulo do filho, nem sentia mais dor e nem doente estava.
Olhando agora em retrospecto, pensando nos caminhos que levaram meu pai a este momento de júbilo, penso que a doença que o vitimou por tantos anos, colhendo pouco a pouco sua vida e sua vitalidade, fazia parte do plano de salvamento que Jesus traçara para ele, cuja metáfora do sonho relatado se faz perfeita, foi preciso enfrentar o mar revolto da doença, da dor e do medo para, finalmente, ser resgatado como o filho amado de Deus que sempre fora.

Luciane da Rosa Lengler

Sobre Luciane da Rosa Lengler

Escritora de crônicas sobre a vida, o tempo e as memórias que atravessam gerações.

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