
Sílvio

Luciane da Rosa Lengler
12 min de leitura
O Salmo 23 é uma oração poderosa, mas mais que isso, é um mantra de fé, de aceitação da vontade de Deus e da certeza de que o amor de Deus nos supre, nos alimenta e conduz até que nossa alma possa deitar em verdes pastos, com o cálice transbordante e a cabeça ungida. Essa unção significa a consagração ao divino, a tudo aquilo que não entendemos, mas aceitamos e reverenciamos como verdadeiro.
Esse salmo, diz a Bíblia, foi uma oração rezada pelo Rei Davi que, antes de ser consagrado rei dos Judeus, era um simples pastor. A inspiração, dizem, veio-lhe quando, já Rei, encontrou um oásis no deserto enquanto fugia de perigos terrenos.
Quando ele, em oração, diz a Deus: “O Senhor é o meu Pastor e nada me faltará” ele se coloca numa posição de humildade. Ele que era um grande e poderoso rei, lembra que, acima dele, há o Rei maior, que guia, protege, alimenta, mata a sede, derrota os inimigos com seu cajado, como um pastor bom que conhece seu ofício e protege suas ovelhas.
Esse era o mantra repetido por seu Sílvio.
O Salmo, tantas vezes repetido, consagra o crente ao Pastor Divino, segue: “Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas. Refrigera a minha alma, guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome”.
O Seu Sílvio era o patriarca de uma família de amigos. Homem manso, de poucas palavras e gestos contidos. Criou os sete filhos com muito trabalho e luta, sempre falando baixo e com doçura. Recebia a todos com um sorriso tímido e acolhedor.
Homem de caráter firme e digno, deu aos filhos e netos uma herança de bom nome e retidão que os distingue por toda cidade, são os filhos do Sílvio, logo, são gente boa, de confiança.
Era casado com a dona Loy, pessoa de riso fácil e de uma candura sem fim. Ele a chamava de “minha véia”, destaque para o “minha”, ela era dele e foi assim até o fim.
Com os filhos já criados e encaminhados, embora ainda jovem, começou a sofrer com um terrível câncer de próstata que fez raiz também nos ossos. Essa doença, ainda incurável, causa dores que não se apazigúam nem mesmo com os remédios mais fortes.
E assim foi, por dois anos, este homem de Deus andou pelos desertos da enfermidade, suportando sem queixas o que era dele, sem egoísmo e sem revolta.
Em sua mansidão, cuidado por todos os filhos e por sua mulher, ele jamais se lamentava, mas o mais impressionante é que não perdia as boas maneiras de homem gentil que sempre fora. Se precisava de algum socorro, mesmo quando já perdera os movimentos e precisava ser mudado de posição na esperança de ver aliviada a dor imensa ou de outra atenção ao seu quadro gravíssimo, as palavras eram sempre de muita humildade. Começava assim: “desculpa te incomodar, mas tu poderias...”, Isso apesar do cuidador da ocasião reclamar: pai, não é incômodo nenhum, estamos aqui pra te ajudar.
E assim, tristemente, a doença foi levando as forças, a cor, as carnes dele. No entanto, não levou jamais a lucidez e permaneceu a fé.
Em uma certa manhã, ele acordou bem disposto, corado e até com a voz mais firme. Neste dia, não pediu o remédio da dor, se alimentou melhor, parecendo a todos muito saudável. Diante da alegria da mulher que comentou com ele a incrível melhora, ele disse, com toda a tranquilidade e confiança: “é que hoje eu vou morrer, minha véia”. Ela riu, como assim? Pois ele não estava apresentando melhora? Qualquer um podia ver como estava corado, com apetite? Ela pensou que fosse brincadeira dele, saiu do quarto rindo, ora essa, que conversa boba.
Então, quando começou a descrever o que via e que ninguém mais via, a família começou a duvidar da lucidez final dele. Quando olhava fixo para a parede do hospital e descrevia o paraíso, a mulher o repreendia com carinho, duvidando dos relatos maravilhosos que ele fazia. Ele, naquele jeito delicado dizia, eu não estou delirando, sei que dia é hoje, que horas são, sei quem são as enfermeiras de plantão e dava, bem certinho, o dia e os nomes. Apenas quanto ao que via não encontrava maneiras de provar. E o que ele via:
“Eu estou vendo um homem, é Jesus. Ele caminha de um lado para o outro, seguindo a beira do mar. Agora, ele está pegando uma rede e vai sair para pescar...”
Então, apesar da melhora apresentada, nesse mesmo dia, à tardinha, ele desencarnou. Mansamente, como sempre foi, esse filho obediente de Deus partiu.
Uma nora, bastante sensitiva, o acompanhava neste momento. Ela conta que, um pouco antes de ele deixar o corpo físico e para um pouco depois, ela ouvia um murmurar de águas como de uma fonte a correr.
Seu Sílvio não sempre pedira a Deus: Guia-me mansamente às águas tranquilas, refrigera minha alma? Então ele não contara, horas antes que, pronto para partir, Jesus, Ele próprio, estava vindo a lhe buscar, rede na mão, para um mar de águas tranquilas, onde ia refrigerar sua alma de homem santo com o banho cristalino de luz divina?
E, como um prêmio, a divindade ainda lhe concedeu uma espiada no paraíso em tempo de poder contar o que lucidamente viu. Ele, generoso que era, não partiria sem dividir com sua família para onde ia e que era bonito e bom, podiam sossegar, ele estaria bem.
Para nós que aproveitamos desta graça divina, por ouvir contar, a conclusão vem da parte final do Salmo, que ensina que, aquele que crê e suporta o deserto com fé constante e sem revolta, sabe que a bondade e a misericórdia divina o seguirão todos os dias da sua vida e que, no momento certo, habitará na casa do Senhor.
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