Rafael

Rafael

Luciane da Rosa Lengler

Luciane da Rosa Lengler

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A partida de um amor da gente dói mais pelo silêncio que fica do que qualquer outra falta que aquele que partiu provoque. Não o silêncio em si, mas o que não foi dito, o que não foi verbalizado, o que não se pode mais discutir, trocar, argumentar, resgatar. O silêncio é duro como pedra e dói uma dor intransponível, é a voz que não sai, o eco que não volta.
Ressente-se da vontade de ligar e perguntar: como está, o que está fazendo, como andam as coisas? A ausência de novidade, de continuidade, do novo e do velho revisitado, da piada não contada, do conselho não recebido e não dado, da briga não brigada, tudo cai sobre aquele que fica e, provavelmente daquele que parte também, avassaladoramente, e aquele “nunca mais” bate forte e machuca, tudo doendo e ressoando no silêncio que fica.
Ou não. O poder do amor, ainda que a vida tenha distanciado três irmãos crescidos, mas já órfãos da mãe que também já partira, poderia transformar o silêncio que ficou em canção.
Música para os dois lados, o de lá e o de cá e, se não houve, no plano físico, toda a interlocução e diálogo que o vínculo da irmandade exigiria, já que nem tudo fora dito, acertado, ouvido e arrumado, isso pode ser transformado em ação, criação, congregação, agora pelos canais invisíveis do espírito.
Pois assim foi e assim ainda é. No dia em que o corpo físico do irmão foi entregue à terra, vítima fatal de um acidente de moto, ao retornar à casa após a cerimônia triste de adeus, a irmã teve uma visão dele, ainda com as vestes que usava na partida, sentado no chão da garagem dela.
Alguns espíritos alcançam a graça de uma última comunicação com o mundo físico se há algum merecimento que permita essa interlocução, o que torna o adeus menos sentido, principalmente quando a partida é muito repentina.
Assim, esse irmão que partia de vez para o mundo espiritual veio até a irmã para dar-lhe um último olhar ou uma palavra de consolo ou apresentar um último pedido. Porém, feita a conexão, ele contou a ela apenas sobre o silêncio, disse que onde estava havia só quietude, nada mais. Ainda hoje, ela se pergunta porque, entre tantas informações que ele poderia dar sobre onde estava, o que ocorreu a ele, no derradeiro encontro, foi apenas mencionar, como num queixume, o silêncio.
Ela também já sofria pela ausência da voz, do riso, da conversa. Mas, ali naquele momento, ela entendeu que ele também sofria. Ele também queria a voz dela, do e do pai irmão que ficaram, da mulher e dos filhos, os risos, o ruído da vida. Oh, o silêncio!
Escrevendo aqui, lembrei, do nada, de uma música do Pe. Zezinho que diz assim: “O silêncio está cantando/ Uma canção de amor e paz/ O silêncio está rezando/ Uma oração por seu irmão. Muita gente vive sem amor e tem solidão/ Mas aqui nesta casa do Senhor/ Solidão não existe não....”
Como não acredito em coincidências, muito menos no acaso e como há séculos não lembrava dessa música e ela começou a tocar dentro da minha cabeça do nada, não tenho como não relacionar que, talvez, ela carregue uma mensagem, talvez o significado do que o irmão que acabara de partir quisesse transmitir.
O silêncio de um canta no coração do outro e assim reciprocamente. E a mensagem que vem e vai é de paz, é de oração, e ele informa: minha irmã, aqui, na casa do senhor, não existe solidão, eu te ouço, eu ouço, no silêncio que deixei para ti, teu coração a rezar por mim.
Escrito isso, o resto da história me fez sentido, porque, ela me contou que, começando a entender o poder de silenciar a voz, os pensamentos, o desgosto, as culpas, tudo o que colheu daquele encontro com o irmão que lhe falou apenas em silêncio, ela finalmente interpretou a mensagem do irmão, entendeu que ele quis dizer que há algo de divino no silêncio, que é o infinito que se manifesta nesse espaço livre de matéria, sem ecos, sem ressonâncias...apenas o absoluto. É no centro deste universo livre de ruídos que se encontra Deus e ele já estava lá.
Diante dessa revelação e ainda sofrendo a perda, foi percebendo a meditação como conexão com o silêncio seria uma forma de honrar a passagem dele para este lugar maravilhoso de paz e remanso.
A meditação foi seu remédio e carregou o irmão mais novo junto nessa jornada. Então, no silêncio da mente inquieta, desenvolveu a disciplina espiritual que já não busca apenas a plenitude do corpo, mas principalmente a harmonia da mente e do espírito.
Entendeu que, no silêncio da meditação se acessa o ser completo e se torna quem se deve ser, o que se encontra na profundidade do eu superior materializado no divino que habita cada um e lugar onde se encontra o Cristo.
E nesse recinto, não só entramos em um melhor relacionamento com quem somos, mas também com os outros, com a criação e com a Realidade Divina, na qual todos estão inseridos e que reverbera na vida espiritual onde se encontram os seres amados que já partiram.
Diante do luto, entendeu que era preciso calar para ouvir e, na quietude do coração, conseguir a comunicação da alma. Talvez até fosse isso que ele lhe pedia naquele momento de comunicação, recém desencarnado, ainda não compreendendo bem onde estava e ela, plena de dor e perda e se perguntando como iria viver dali para a frente.
Percebeu que o irmão quis que ela lembrasse que o paraíso (que todos conhecemos, pois viemos de lá e para lá retornaremos) é, antes de mais nada, um local silencioso e de contemplação.
E assim foi. Foi preciso aprender a meditar. Logo, conheceu o valor dessa prática e viu que é uma forma eficiente de conexão amorosa, que a prática abre a intuição, controla ansiedade. Não é por nada que os povos mais pacíficos e espiritualizados são meditantes.
Claro que há outros caminhos para a conexão do amor, oração, música, yoga, a prática da caridade, reiki e outras tantas, todas maravilhosas práticas de relaxamento e autoamor, mas, até onde eu saiba, a meditação é a única prática em que o silêncio em todos os níveis é exigido.
Quando se medita, cala-se a boca, os olhos, o coração e a mente inquieta. E é criado um canal energético que leva a outras práticas, à oração, à cura emocional e pode-se até forçar um estado de felicidade e autoconhecimento por meio da supressão do desejo ansioso que causa o sofrimento e o desconforto.
E, por fim, ela percebeu, junto com o irmão caçula que continuou ao seu lado, que seria importante que o irmão que partira fosse honrado, pensou que precisava se abrir um espaço físico para preencher o vazio que ele deixava, onde se cultivasse o silêncio como ele ensinara, um lugar de cura, de troca de afetos, um espaço onde qualquer um que adentrasse ali pudesse ter a oportunidade de ser ouvido, visto, acarinhado, acolhido. Ações que, aos olhos dos dois que ficaram, dariam propósito à existência daquele que partiu tão precocemente.
E assim, eles criaram um espaço onde pudessem ser oferecidas práticas de meditação, yoga, círculos de paz, trocas de experiências, dança circular, atendimento a crianças, pais, mães, e tantos outros aprendizados, tudo com o único propósito de favorecer o crescimento espiritual por um ouvir amoroso neste espaço de fala seguro e confiável, de troca de afetos e também de silenciosa meditação e conexão com o divino ser de cada um e de todos e deram o nome dele.
Na sala Rafael, se dança e se ri, se aprende e se ensina, se recebe cuidado psicológico, mas, principalmente, ali é cultivado o silêncio como forma de oração e de aproximação com o outro, com reverência e respeito.
O irmão ausente se fez presente, está entre os dois que ficaram e que ainda lamentam sua ausência física. Mas nenhum dos dois duvida que ele está bem, que recebeu o amor e cuidados no plano superior junto à mãe dos três que, provavelmente, escolheu partir antes para esperá-lo, acolhê-lo, curá-lo, não sem antes entregar à filha uma nova visão do mundo que deixava para trás.
Os irmãos não ousam duvidar e nem têm por quê. A mãe até veio em sonho para contar aos dois que o filho já está com ela, que fora tratado e, quase curado, já se encontra feliz.
E eu, que não gosto de barulho, fico feliz e esperançosa de gostar deste lugar para onde todos iremos, se a música do céu for o silêncio que canta canções de amor, perdão, reencontro, ali será realmente um paraíso.

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Luciane da Rosa Lengler

Sobre Luciane da Rosa Lengler

Escritora de crônicas sobre a vida, o tempo e as memórias que atravessam gerações.

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