Marilene
Luciane da Rosa Lengler
22 min de leitura
Para uma pessoa ser reconhecida como santa pelos protocolos da Igreja Católica é necessário que haja, pelo menos, um milagre atribuído a ela após a sua morte. De preferência dois.
E deverá ter vivido uma vida de oração e dedicação ao sagrado ofício ou sacrifício, palavra que deriva do termo sacro-ofício, que originalmente significava apenas um fazer consagrado.
Embora a origem da palavra remeta à ideia de tornar algo abençoado através de uma ação ou tarefa que tem um propósito maior em benefício de si mesmo e dos outros, a Igreja atribuiu a ideia de sacrifício a sofrimento assumido de forma voluntária.
O tema da santidade vem nas crônicas bíblicas sempre com personagens de qualidades exageradas, enormes, superlativas, e contam histórias de penitências e martírios dolorosos. No início do cristianismo era um tal de tome flechada, caldeirão de óleo quente, luta com leão e fogueira. O tamanho de um santo era dado pela vida de renúncias extraordinárias, sofrimentos auto infligidos ou tormentos impostos pela negativa de renunciar ao Cristo como salvador.
Adiante na história, a santidade também se manifesta magnífica e inatingível, desta vez pelo domínio do conhecimento produzido e ensinado por doutrinadores e filósofos grandiloquentes, São Paulo, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho e o doutor da igreja, Santo Antônio são exemplos. Todos eles sempre referidos com adjetivos admiráveis, destacam sua extraordinária sabedoria.
Também grandioso, Francisco, o primeiro hippie da história, o maluco beleza anticapitalista, que renunciou à posição, fortuna e privilégios e saiu pelado e descalço do palácio do pai onde morava para viver nas ruas onde conversava com o sol e com a lua, chamava de irmão e irmã a toda natureza, pois entendia que eram filhos e obras do mesmo pai. São Francisco de Assis é meu santo preferido, porque encarna um ideal puramente cristão, de amor ao próximo e entrega completa à proteção divina. Mas, apesar de pregar a simplicidade e a pobreza, suas obras são imensas.
Mas os dias de hoje são diferentes dos tempos bíblicos. Essa superlatividade dos adjetivos atribuídos aos santos do início do cristianismo já não cabem mais nesses tempos. É só se observar a Irmã Dulce, Madre Teresa, Chico Xavier e outros gigantes humildes. O que se espera dos santos modernos é humildade, modéstia e discrição, valores inversamente proporcionais à ostentação ou à visibilidade forçada e cultuada por alguns pretensos guias e mentores espirituais que, quanto mais pretensiosos, menores serão.
A santidade neste século é mais parecida com a descrição da própria caridade como ensinada por São Paulo, (1Cor 13, 4-7). Para o perseguidor de cristãos arrependido após um puxão de orelhas dado pelo próprio Jesus, a caridade deve ser uma ação concreta, paciente, prestativa, não invejosa, não exibicionista, que não se incha de orgulho e nada faz de inconveniente, não busca seu próprio interesse, não cultiva a irritação, nem guarda rancor, não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. A caridade tudo desculpa, tudo crê, tudo espera e tudo suporta. Podemos trocar a palavra caridade por santidade e temos o melhor conselho para aqueles que buscam a evolução.
Se o conceito for mesmo este para definir uma pessoa iluminada pela santidade, eu posso dizer que a Marilene viveu o sagrado ofício em vida, no cotidiano, cuidadosamente honrando os ensinamentos Paulinos sobre a caridade que, para ela, vinha natural e autêntica.
Por sua conduta respeitosa, ela operava mil milagres por onde andava. E fazia isso através de gestos espontâneos, palavras mansas e olhar compassivo, que resultavam em contribuições para a elevação e pacificação de tudo que a rodeava.
Perto dela, qualquer um se obrigava a se revelar melhor do que normalmente era, isso por que ela não deixava outra opção, ela sabia minimizar os defeitos da gente delicadamente e exaltar nossas mínimas qualidades. Eram uma reveladora de talentos. Na presença dela, qualquer problema se mostrava menor e logo aparecia a solução, a dor encontrava remédio e as alegrias....ah, essas cresciam só de se dividir com ela.
Agora que ela partiu, me vejo questionando como será posível medir o tamanho destes milagres cotidianos que ela produzia com tanta naturalidade, sem esforço nenhum e os quais testemunhávamos sem conseguir imitar.
Qual régua pode quantificar a luz de uma alma que está no mundo apenas para cultivar paz, acalmar o coração de cada um, curar e espantar mágoas, mudando o mundo apenas por viver caridosamente? Ela foi um autêntico instrumento da paz do Senhor, como rezou meu santo preferido.
Se for possível separar os milagres em pequenos e grandes, eu deixaria os grandes como curas, salvamentos e conversões para que deles se ocupem as igrejas ou para a ciência resolver.
Os pequenos, esses que realmente constroem um mundo melhor, eu vi a Marilene produzir aos montes deles. Ela fazia asim: apenas recolhia o mal, a dor e a angústia e, pela palavra, transformava em bem, esperança e alívio. Ou seja, transmutava a realidade produzindo um verdadeiro prodígio neste mundo de expiações e provas onde os discursos de ódio e preconceito promovem a divisão e o desamor, e essa ação bondosa, para mim, é a melhor definição de milagre moderno.
Quando a Marilene estava prestes a partir deste mundo e todos os que a amavam já estavam sofrendo e preparando o coração para a dor e a saudade que viriam, a Karla Braun, amiga em comum, escreveu este texto que peço licença para reproduzir: “Ontem, quando pediram orações para a cirurgia espiritual da Marilene, estávamos no barco. Ao ler a mensagem olhei para o lado e o sol intenso de um dia lindo iluminava o mar como se tudo fosse luz. Sobre as águas, se formavam pontinhos que brilhavam intensamente. Pensei: essa é a Marilene. Ser que ilumina a todos que convivem com ela.”
Bem assim. A Marilene nos iluminava como o sol se espalhando em pequenos pontinhos de luz, cada um recebendo uma porção do que ela, tão generosamente, dividia. Éramos iluminados pela sabedoria modesta e sem vaidade, sem exageros e sem afetação que ela transmitia.
Nunca a ouvi gritar nem se lamentar, não se exibia e nem se envaidecia. Se sofria, aceitava a dor com dignidade e confiança no bem maior. Como mulher, era caprichosa e vaidosa, se enfeitava, adorava uma viagem, era apaixonada pelo marido, seu companheiro nesta vida e tinha muitos amores. Era um exemplo de gratidão, pois a tudo e de tudo dava graças.
Nos quase trinta anos que festejamos juntas as viradas dos anos, ela providenciava e entregava rosas brancas para quem as quisesse, um gesto que carregava uma fé sicrética, sem forma e sem cartilha, apenas orientando para o pedido e agradecimento sinceros de cada um dentro da própria crença.
Essas rosa brancas seriam jogadas com sentimento ao mar na hora da virada do ano em um ritual que ela conduzia do mesmo jeito que vivia, em silêncio e sem impor formatos. Um carinho com cada dor, cada alegria, cada perda daquele ano que se encerrava e um desejar sincero de dias melhores para o que se iniciava.
Só dava conselhos quando solicitada, somente nesse caso, tão sinceros, que era impossível não seguir. Tinha palavras de curar uma dor que alguém confessava, com vergonha, por algum erro cometido. Ela também sabia elogiar sem adular e, para aquele que estava atormentado e sem amor próprio, questionava com doçura como poderia pensar em desistir se tudo no mundo era bom e valia à pena?
Quando em um grupo se iniciava uma fofoca, ela tinha as palavras certas para dissipar o assunto e elevar a vibração do ambiente. Seus olhos se avivavam com qualquer notícia boa, diante dela, as coisas boas pareciam sempre melhores.
Diante de uma notícia ruim, tinha uma conduta de aceitação sem jamais diminuir o sentimento dos outros, não importava o tamanho da dor, ela sabia como acolher e oferecer conforto e, assim, aliviava o peso do sofrimento e ajudava a renovar as forças para continuar.
Era capaz de se mover quase sem se fazer notar por este mundo cheio de exibimentos e auto elogios, bondades anunciadas e auto promoção sem fim. Esbanjando paz e amorosidade, ela andou por este mundo com discrição e humildade. Para acariaciar os egos com leveza, colocava apelidos elogiosos ou delicados em todos.
E eu, muitas vezes, prestes a fazer uma bobagem da qual me arrependeria, parava e me perguntava: o que a Marilene faria no meu lugar e nessa situação? E eu já sabia que estava indo mal, que precisava ser mais humilde, mais compreensiva, mais caridosa, mais, mais, mais... ou menos, menos, menos...dependendo da ocasião, menos agressiva, menos arrogante, menos faladeira...Nas vezes em que fui eu mesma, olhando para trás, pensei com desgosto: a Marilene saberia fazer melhor.
Diferente de mim, ela nunca interrompia a fala de ninguém, ouvia com atenção e com olhos cheios de entendimento o que lhe vinham contar. Não defendia pontos de vista, nem discutia dogmas. Apenas ouvia e, pelo olhar ou por um toque de mãos, dava seu veredito, sempre positivo.
E sem falar de Deus nem religião, sem impor valores ou posição política, apenas com atitudes e boas palavras, ela foi elevando aqueles que, como eu, tinham a sorte de conviver com ela e ia nos aproximando de Deus.
O Deus dela é bom, amigo, que acolhe e aceita cada filho como é, é um Deus de perdão e de reconciliação. Como filha obediente deste Deus, nunca a vi repreender ou rejeitar ninguém. Pensando no que foram seus milagres, acho que o feito mais importante que ela operava era o de nos corrigir e endireitar nosso caráter sem fazer força, apenas com exemplo, doçura e bondade.
E então ela nos deixou. Depois de enfrentar uma doença sem escândalo, sem barulho e sem rancor.
Do mesmo jeito que viveu, saiu quietinha, mansa e doce. Antes de partir, escreveu para a enteada a quem amou como uma filha e de quem recebeu em troca duas netas que eram a luz de seus olhos, uma carta de despedida. Nela, falava do orgulho de tê-la nascida do coração. Agradecia pelas netas e dizia que a melhor característica da enteada era que se importava com os outros, que nunca a perdesse. Qualidade que ela mesma tinha. Último conselho para lembrar a filha amada de sua maior qualidade para que ela não a deixe pelos caminhos da vida.
Também veio se despedir da neta mais velha, a menina sonhou que se encontravam em uma praça onde a avó a abraçava com delicadeza e falava de amor, entendo que não sairia desta vida sem dizer adeus e olhar uma última vez no coração das meninas.
Nos seus últimos momentos na UTI, quando já estava pronta para a viagem, o marido viu se chegar ao lado dela o pai, seu Sílvio, que vinha buscá-la para o infinito. Mais longe, ficou a mãe, dona Loy, que não chegou tão perto. O pai, então, disse ao genro: um dia, eu te entreguei minha filha, hoje tu me devolves e eu a levo comigo.
Mais tarde, nesse dia, ela deixou o corpo físico definitivamente, mas sabemos que, nessa hora, ela já estava com aqueles que festejavam o reencontro tão esperado do lado de lá e a saudavam com alegria.
Mas para nós está difícil.
Ela faz falta e, embora todos saibam que ela deve estar em um lugar que alguns chamam de céu e que eu chamo de presença de amor incondicional, a ausência física dói.
Não consigo imaginar os encontros sem a presença miúda, do sorriso acolhedor e da atitude conciliadora da minha querida amiga.
Dia desses, sonhei com ela que me apareceu jovem e altiva, com uma pose de rainha que não ostentava em vida, muito embora fosse uma das grandes, mas que por aqui sempre caminhava com modéstia e humildade, qualidades que só confirmavam sua grandeza, marcas dos espíritos maiores.
Ela passou por mim e não me viu, certamente porque estávamos em dimensões diferentes, como na vida terrena, eu sempre menor e abaixo dela. Mas eu a vi e matei as saudades, um pouquinho pelo menos.
Espero um dia reencontrá-la e ela virá sorrindo, me oferecerá uma bebida e falará de nostalgias. Sentaremos em uma praia, pés no chão e uma boa conversa vai se iniciar, ela me pedirá notícias de seus amores e, novamente, sem nenhuma pretensão, vai me ensinar a ser um pouquinho melhor e vai me mostrar o lado bom de alguma coisa ou vai amenizar alguma dor que eu, por acaso, leve comigo para o outro lado. Por fim, vai me convencer de que sou melhor do que me vejo, novamente fazendo milagres na minha vida. E, ainda que a Igreja católica jamais a reconheça como a santa que foi, para mim, seguirá sendo aquele exemplo que procuro quando não sei como agir para dormir com a consciência tranquila.
Clique para ouvir este artigo 🎧
Comentários
Carregando comentários…