
Lourdes

Luciane da Rosa Lengler
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Ela sempre foi uma pessoa de muita luz, uma fé inquebrantável, sempre com disposição para oferecer uma oração ou uma bênção para quem necessitasse. Ficou órfã aos cinco anos de idade, foi criada por um pai amoroso e compassivo, mas nunca duvidou que encontraria sua mãezinha, tão cedo arrancada dela, no plano superior. Criou os filhos na retidão moral e contribuiu para a criação de outras pessoas que precisavam de uma mão forte e um coração amoroso, nunca negando ajuda a quem pedisse.
Dez anos antes do seu desencarne, teve diagnosticada a doença de Alzheimer. A doença foi evoluindo de forma gradual, lenta e silenciosamente, apagando, primeiro, as memórias recentes, mas, com o tempo, apagando o resto. No entanto, ela nunca deixou de reconhecer os filhos e os netos, também reconhecia outros afetos, sempre com um ar divertido e um pouco sapeca.
Seu quarto de enferma era muito visitado, amigos, parentes, todos iam beber da luz dela e ninguém saía de lá sem um elogio ou uma palavra de amor. Até que veio a pandemia do COVID e fomos obrigados a restringir as visitas, que só podiam se aproximar dela de máscara, o que dificultava o já custoso reconhecimento das pessoas. Nós percebemos que ela foi ficando triste e desligada da realidade, com um olhar apagado que só brilhava em poucos momentos.
Quando parecia que a pandemia não apresentava mais perigo, acabamos por descuidar um pouco dos cuidados, permitindo visitas sem máscaras, até para melhorar a interação, pois pensávamos que ela, que já estava vacinada, estaria segura.
E foi assim que ela se contaminou com esta praga mundial. Em poucos dias foi desenganada, ia partir. Nós, os filhos permanecemos ao seu lado, no quarto da casa ainda, mas diante do agravamento do quadro, a levamos para o hospital.
Antes disso, foi chamado um padre para ministrar-lhe os santos óleos, ela acreditava que ninguém deveria partir deste mundo sem os sacramentos da absolvição e extrema unção. Tanto que, durante boa parte da vida, assistia a missa e comungava na primeira sexta-feira de cada mês, porque acreditava que esta prática garantiria os sagrados serviços de despedida.
Neste dia, o padre que veio em nosso socorro, sensivelmente, diante dos filhos, comunicou-nos que ela estava pronta para partir, mas não o faria imediatamente. Ficaria um pouco mais entre nós, de formas a garantir bênçãos que ela julgava serem ainda necessárias para nosso crescimento.
Num primeiro momento, não entendemos esta pregação: ora, a maior bênção que recebemos fora o fato de sermos seus filhos, a herança moral e espiritual que ela nos deixava. Não desejávamos ver o sofrimento dela se prolongar, queríamos o seu descanso merecido após uma vida de luta.
No entanto, os desígnios de Deus são sempre misteriosos. Assim, ela sobreviveu ainda uma semana, recebeu a visita de todos os netos, muitos amigos, a amada filha e a neta de criação, dos sobrinhos...todos vieram se despedir, enchendo o ambiente de luz e amor.
Também sentíamos presenças espirituais de luz ao seu redor. Volta e meia, um som ou um sacudir nas janelas denunciavam presenças invisíveis por ali. No dia de sua partida, eu entrei em oração e agradeci a presença de todos os irmãos de luz no quarto, agora, no hospital. Emocionada, fui para o banheiro para não chorar ao lado dela que, mesmo em coma, poderia sentir a minha dor.
E, mesmo no banheiro onde me recolhi, segui agradecendo aos irmãos de luz que sentia ali presentes, meu avô paterno, pai amoroso que criou as três filhas órfãs de mãe sem jamais abandonar a viuvez por medo e que, caso se casasse novamente, sujeitaria às filhas a maltratos de madrasta, a tia Leda, irmã mais velha dela já desencarnada, meu pai, tios e tias da minha mãe, entre outros amores dela.
Mas, entre todas essas presenças percebidas e bem vindas, não percebi que minha avó Elsa, sogra de minha mãe, ali estivesse. Assim, chorando escondida no banheiro do hospital, mesmo que no momento não houvesse vento, um galho de árvore bateu na janela como num aceno e, imediatamente, eu entendi a presença de minha avó paterna. A mesma avó que tinha avistado o filho que a viera buscar, mimetizado em um galho de laranjeira. Esta percepção foi tão clara que ri e disse em voz alta: entra, vó, vem acompanhar minha mãe ao céu.
Quanto à Bênção que o Padre nos anunciara, ficou muito fácil de entender. Desde a infância, ela nos ensinou a manter a união entre os irmãos. Nós podíamos brigar, xingar, chorar, dizer o que pensávamos que fossem verdades duras uns aos outros - acredito que ela até estimulasse esse comportamento - desde que, ao final, houvesse uma reconciliação e um perdão para garantir a união entre nós.
Ninguém podia ficar brigado, ela explicava que sobrevivera à perda da mãe pela união entre ela e as irmãs. Aliás, a lição mais valiosa que recebemos dessas três mulheres excepcionais foi essa, a importância da família como resistência às dificuldades da vida.
Nós, os filhos, tentamos viver assim, um por todos e todos por um, como os mosqueteiros. Porém, a vida afasta, dificulta a convivência e a pandemia separou fisicamente, empurrando cada um para o seu lado. Nos dias em que ela sobreviveu após a extrema unção, ficamos dias e noites, os quatro, nos “re” unindo, conversando, religando, confortando. Por ela, rezávamos, tocávamos músicas, lembrávamos momentos da nossa vida, cuidando um do outro nesse momento de despedida e dor...somente quando tudo terminou é que percebemos, na saudade, a importância deste convívio, deste cuidado amoroso, um aliviando a dor do outro.
Sagrada bênção que em seu sacrifício final ela nos concedeu! Quando ela deu seu último suspiro, não choramos, não houve desespero, apenas o sentimento de uma linda lição aprendida, do valor da união, do suporte que uma família unida em oração e amor pode contra dor e a perda. A cerimônia de despedida teve música, teve abraços, reencontros, histórias engraçadas dela e apenas boas lembranças dessa vida, agora em outra dimensão, honrada e festejada.
Após seu desencarne, ainda ecoa seu amor em nossos corações, volta e meia ela vem em sonho para algum dos filhos ou netos ou se manifesta diretamente ao coração. Ainda nos faz rir, puxa a orelha de um ou outro que anda perdido dos seus ensinamentos, e a saudade quando dói, faz lembrar que haverá um reencontro de festa e de riso.
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