João Luis

João Luis

Luciane da Rosa Lengler

Luciane da Rosa Lengler

15 min de leitura

Se um beija-flor invadir a porta da sua casa, lhe der um beijo e partir...fui eu que mandei o beijo

Eu não conhecia o João com proximidade. Sabia quem ele era, pai de um amigo da minha filha e marido da Sílvia, com quem eu dividia meditações, yoga e mais algumas práticas espirituais. Descobri, no entanto que ele era um homem muito alegre e estimado.
Dava pra ver, pela família que ele construiu e pelo seu jeitão desajeitado de homem grande, mas doce e compassivo, que adorava a vida, a mulher, os filhos, música, mesa cheia e uma boa conversa.
Em uma única conversa que tivemos, pude ver que, felicidade, pra ele, era estar reunido com a família e amigos ao redor de uma mesa, numa pescaria ou em alguma festa, momentos em que pegava do violão e cantava e tocava, com uma alegria que se espalhava pelos cômodos da casa, fazendo graça para ver aqueles que amava em harmonia e riso farto.
Soube, depois, que as festas da família eram sempre um palco para ele expressar o amor e a alegria de viver. Certa vez, no casamento de uma sobrinha, subiu ao palco onde cantavam os músicos contratados e tomou conta do microfone, fazendo a família cantar junto, animando a todos com sua performance já conhecida, mas sempre divertida e espontânea.
Dizem que saiu do palco meio à força, porque os músicos, mesmo avisados sobre ele e seus roubos de microfone, estavam se divertindo e esqueceram do contrato.
Esse era o João. O tio divertido e festeiro, pai exemplar, inteligente e falante, um bom amigo, pescador nas horas vagas. Mas mais que tudo isso, era um homem apaixonado pela mulher da sua vida. Disse-me, uma vez que, em nenhum dia da vida em comum com essa mulher, havia deixado de dar-lhe uma flor e um beijo.
Ela, ouvindo essa indireta declaração de amor, confirmou na hora, um pouco tímida, mas recebendo a flor, encostou no coração e sorriu, um pouco enrubescida pelo gesto público, tantas vezes repetido...
Pois, numa véspera de Natal, o João partiu. Esperou que a amada saísse (para evitar ele também ver o desespero e a dor dela, num último ato de amor e cuidado) para alguma providência de última hora e, na presença apenas dos dois filhos, deixou a vida e aqueles que amou com tanta força.
Porém, a Sílvia me contou que, desde um tempo antes, ele vinha organizando a sua ausência, em silêncio, foi ajeitando papéis, tomando providências legais, arranjando a vida de todos para que ficassem bem e encontrassem ordem na bagunça da dor e do luto que viriam, acredito que ele soubesse disso.
Ensinou o cachorro Thor a sempre permanecer ao lado da mulher amada, dizia: fica com ela, cuida dela, protege. E o cão rabugento e doce, sabendo que essa é a vontade do dono, cumpre sua missão, sempre ao lado dela, onde quer que ela vá, rosnando para as visitas e, tão grande e amoroso como o seu dono, protegendo e cuidando.
Também, andava muito preocupado em ensinar algumas coisas para a filha, no manejo do sítio e da segurança da casa, indicando que ela deveria substituí-lo quando partisse. Olhando em retrospecto, todos conseguem ver o que ele fez: preparou tudo para garantir segurança e conforto para aqueles que amava.
É que havia uma urgência nessa partida, a hora era chegada conforme os desígnios incompreendidos do universo e o João, sabendo que, em breve os filhos partiriam para o exterior para estudar, entendeu que era necessário aproveitar o tempo em que ainda estariam por perto para garantir que uns consolariam aos outros e vice e versa.
Então, aproveitou a família reunida para as festas para ter certeza de que nenhum deles estaria sozinho na hora da terrível dor da separação. Parece que também queria evitar a indignidade da doença, temia dar trabalho e sofrimento àqueles que amava, portanto, seria melhor deixar a vida sem algazarra, sem alvoroço, mas com decisão, de um só golpe.
E, barulhento que era, partiu em silêncio, deixando atrás de si o que menos gostava: dor, tristeza e saudade.
Os filhos consolaram a mãe, a mãe consolou os filhos e todos buscaram na presença forte e amorosa do João o conforto da repentina perda.
Um tempo depois, os filhos partiram para o exterior, conforme planejado muito antes, e a mulher amada ficou sozinha em casa, apesar do carinho dos irmãos, dos sobrinhos, da mãe e dos amigos que tentavam em vão preencher o vazio deixado pela viuvez.
A Sílvia ficou morando no sítio da família, que é um lugar com uma energia muito boa. Desde a porteira, os visitantes (como eu) já se sentem bem, em paz, o lugar todo, com mata nativa e dois lagos, um capitel com a imagem de Nossa Senhora, animais silvestres, flores e muitas borboletas, provoca muita paz e conexão com as coisas do coração e do espírito.
Com os filhos fora para estudar e evitar a solidão, a Sílvia continuou abrindo a casa para algumas práticas holísticas para aqueles que, como ela, buscam evolução e crescimento espiritual.
Pouco tempo depois da partida dos filhos, a casa vazia e a saudade enorme, ela recebeu uma amiga que veio de São Paulo para alguma vivência mediúnica e de amorosidade. Mas a tristeza ainda era visível, a saudade aumentada pelo tempo não cedia espaço no coração da Sílvia e, mesmo com o trânsito das amigas que vieram para as práticas, aquele dia estava difícil pela alegria roubada no natal.
Foi aí que o João entrou em ação: A Sílvia estava sozinha na cozinha quando ouviu um barulhinho...olhou em volta e, na bancada da pia, havia um beija-flor pousado.
Ela imaginou que ele estivesse machucado, ofereceu a mão e ele pousou suavemente na mão dela. Ela então, deu-lhe muito carinho, coçando a cabecinha e o peitinho, o que ele aceitou sem susto. Ficaram muito tempo ali, naquele momento de conexão ainda inexplicável, mas que anunciava para ela algo que fazia o coração bater mais forte, com uma emoção de reencontro.
Quando ela levou o bichinho para a rua e o depositou no moirão da cerca, ele voltou pra ela, como não querendo se separar e, uma vez mais, pousou na mão dela, demonstrando confiança e conexão.
Talvez, nesse momento, ela tenha suspeitado do significado daquele encontro, porque, desconfiada, foi pesquisar no celular e a primeira mensagem que lhe veio foi a de que o beija-flor é sinal de que as almas das pessoas que morreram e permanecem no coração daqueles que sofrem de saudade decidiram visitar e mostrar que estão bem.
Essa crença é baseada numa lenda guarani que envolve o beija-flor como mensageiro das almas. Para completar, descobriu que, no xamanismo, o beija-flor é um símbolo do amor romântico, graça, alegria, cura, sorte e suavidade.
Apesar da tristeza, da saudade e dos planos interrompidos pela partida do João, depois da visita do beija-flor, que acontece agora seguidamente, ela se sente guiada e acompanhada por este amor que ultrapassou os limites da vida corporal, ligados que estão pela alma, com a certeza da presença que antes era física e, portanto, mais frágil, e agora é de uma energia mais presente, visível pelo sinal enviado pelo homem apaixonado que lhe entregava flores e, agora, a beija como se ela fosse, agora, flor, seu eterno beija-flor.
Para mim, essa é a história de amor mais linda e tocante que já vi - testemunha que sou destes fatos - e que reforça em mim a certeza de que não amamos à toa, que há, sim, um projeto maior nos encontros e também nos desencontros na vida física.
Outro dia, viajando com a Sílvia numa estrada de chão batido, ela falando no João, me contando das comunicações mediúnicas que recebe dele, paramos para aguardar nossa vez numa travessia de ponte, onde não havia flores, só poeira. Ela, sorrindo, me mostrou que um lindo beija-flor veio bater suas asinhas na vegetação ao lado dela na janela do carro.
Essa comunicação graciosa e doce dele com ela é tão comum que a gente nem se espanta mais, é natural e sempre arranca dela o mesmo sorriso tímido que vi no dia em que ele entregou a flor, repetindo o gesto tantas vezes feito, declarando o amor e a presença dele que se reflete em cuidado e companhia, amor eterno e certeza de reencontro.
Sempre que alguém põe em dúvida a continuidade da vida após o desencarne, eu fico me perguntando quão cega é essa pessoa e o quanto a dor do afastamento seria amenizada se apenas parasse um instante para olhar um beija-flor que pousa suavemente e ali permanece, uma borboleta azul que revoa, um galho de laranjeira que balança no cair da tarde....

Luciane da Rosa Lengler

Sobre Luciane da Rosa Lengler

Escritora de crônicas sobre a vida, o tempo e as memórias que atravessam gerações.

Clique para ouvir este artigo 🎧