Dione

Dione

Luciane da Rosa Lengler

Luciane da Rosa Lengler

12 min de leitura

Quem nunca ouviu uma história de alguém que desencarna e, após a surpresa da partida insuspeitada, imprevista, a família descobre que esta pessoa vinha agindo como um viajante que se prepara e apronta tudo para partir, garantindo a tranquilidade daqueles a quem amava, mesmo que não tenha causado a própria morte por suicídio?
Assim foi com esse professor. Não o conheci, ele era amigo de uma pessoa querida que me contou essa história. Professor de biologia, só teve uma namorada em toda a vida, era perdidamente apaixonado por ela. Também era um filho muito devotado aos pais.
Casou-se com a mulher amada e, com ela, teve um filho. O casamento não deu certo, se separaram, mas ele continuou a viver para o filho e para a ex-esposa e nunca deixou de sofrer com a separação.
Quando alguém perguntava por que ele não buscava o divórcio e a reconstrução de sua vida, respondia, enigmático, que sua maior qualidade era a paciência, mas esse era seu pior defeito também.
Neste período em que esteve separado da esposa, aproveitou muito bem a vida, investiu em sonhos antigos e valorizou o tempo aqui no plano físico. Para começar a nova vida, comprou uma motocicleta, seu sonho desde menino e, sobre duas rodas, viajou por vários lugares, realizando desejos antigos de explorar novos lugares, culturas e experiências, agora com a liberdade que a vida de solteiro oferecia. Mas sempre voltava para o filho e para perto da mulher amada que não o queria mais.
Nesse período, o pai desse jovem professor desencarnou. A dor da perda e a saudade do pai, homem presente em sua vida, seu amigo, esteio e amparo, fez com que ele mudasse, ficasse mais tristonho, até deixou de lado as viagens de moto, parecendo a todos que se deprimia.
Pelo pai, ia muito ao cemitério, sentava-se perto do túmulo e ali ficava meditando por longos períodos, talvez se consultando, abrindo o coração e a alma, trocando impressões, pedindo conselhos em silêncio, ouvindo o murmúrio do vento e a força da quietude que vem dos túmulos como alegoria da última e definitiva morada do corpo físico.
Quando fazia um ano depois do desencarne do pai e, portanto, que ele frequentava muito o cemitério, um dia, um amigo o viu parado junto ao portão mas, desta vez, sem entrar como sempre fazia.
O amigo notou que ele trazia no olhar uma expressão vazia, ausente, como se, naquele momento, viajasse em outra dimensão, vendo outras paisagens que não o portão aberto aos viventes para a lembrança daqueles que partiram e cujos corpos, ali sepultados, contam da vida e da missão dos amados, mas nada além disso, posto que o espírito, liberto da matéria, já se encontra em outra dimensão, onde, certamente, está a trabalhar continuamente pela própria evolução.
Porém, contrariando o costume adquirido desde o desencarne do pai, desta vez, apenas contemplou o campo sagrado desde o portão, sem adentrá-lo, como se estivesse vendo algo para além das frias lápides. O amigo que testemunhou esse raro momento, somente depois da partida do Dione é que se apercebeu que presenciara algo inexplicável, um fenômeno que, certamente, tinha conexão com as decisões preparatórias para a partida do jovem, embora, essa certeza apenas se justifique pelo sensação que jamais esqueceu de presenciar o sagrado, o divino em ação, ali na porta do cemitério.
Poucos dias depois, em viagem à capital, emprestou seu carro para um motorista experiente dirigir e foi, com amigos a um jogo de futebol. Na volta, houve um acidente, ninguém morreu no local, mas o professor foi levado de ambulância ao hospital para uma avaliação, pois estava com alguns ferimentos leves, embora estivesse bem lúcido e sem sofrimento aparente.
Ele foi todo o trajeto conversando, calmamente, com os socorristas. Mas, em certo momento, eles perceberam que ele se apagava, lentamente, sem lutar, em completa aceitação, simplesmente foi abandonando o corpo de forma mansa e pacífica, como homem que sempre foi. Ele faleceu antes de chegar no hospital e, somente então, se deram conta que ele estava com uma hemorragia interna que foi desligando-o desta vida sem sinal, sem susto, silenciosamente.
Sempre observo a coerência que há entre a forma como a pessoa levou vida e como ela enfrenta o momento da morte. Na hora extrema, o homem se mostra em consonância com o que era em vida. No caso do Dione, um homem manso e dedicado aos seus amores, que viveu sem espalhafato, sem escândalo, partirá desta forma, delicadamente, em silêncio e em completa entrega.
Após sua partida, a família foi descobrindo que, viajante que era, também tinha preparado as malas para esta última viagem. Além de se despedir delicada e sutilmente de todos os seus amores, havia quitado todas as suas contas, arrumado todos os papéis, mas o que passou despercebido de todos como um ato de preparação, foi o fato de que, finalmente, ele tinha assinado o divórcio para deixar livre a mulher que amou por toda sua vida e da qual nunca quis se divorciar. Talvez, esse último gesto de amor pudesse ter denunciado que ele sabia que o momento da partida chegava e quis libertá-la do laço do casamento.
Ninguém nunca saberá o que ele viu ou soube naquele dia no portão do cemitério, mas para todos os que o conheceram, ficou claro que ele sabia o que estava por vir, que talvez nem fizesse sentido visitar o pai no túmulo, uma vez que logo, logo estariam juntos em um lugar feliz de reencontro.

Luciane da Rosa Lengler

Sobre Luciane da Rosa Lengler

Escritora de crônicas sobre a vida, o tempo e as memórias que atravessam gerações.

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