Derqui

Derqui

Luciane da Rosa Lengler

Luciane da Rosa Lengler

15 min de leitura

Dois irmãos como metáfora do amor familiar
Essa história é sobre um homem que vem de uma família numerosa, formada por muitos homens e duas mulheres. Pode-se dizer que são pessoas lutadoras, que venceram pelo estudo, pelo esforço pessoal de cada um, todos, hoje, idosos ou quase, buscaram na instrução e no trabalho incansável e honesto a oportunidade de uma vida diferente, melhor.
Todos se graduaram: médico, dentista, engenheiro, pedagoga, apesar das dificuldades da vida no interior e das poucas condições. Entre os irmãos, há uma irmã que sempre precisou de atenção especial, porque nasceu com uma condição neurológica que eu desconheço, e toda a vida necessitou de cuidados, dependente que viveu dos irmãos, por ter questões motoras e cognitivas leves.
Por conta destas necessidades, sempre foi atendida financeiramente por alguns dos irmãos, mas, no dia a dia, cuidada pela outra irmã, que zelava por todas as suas necessidades físicas e emocionais, tanto que moravam lado a lado, dividindo a vida mais proximamente.
Porém, quando todos já com certa idade e os problemas daquela se agravando, foi se tornando impossível dar a qualidade do zelo que a primeira precisava sem esgotar as forças da segunda, optaram por interná-la em uma casa geriátrica, onde recebia atenção e cuidados especializados, mas em um local a uma quadra de distância da casa da irmã, que a visitava todos os dias e um lugar onde também recebia as visitas amorosas dos familiares, o asilo era quase uma extensão do lar que conhecia, e ali era genuinamente feliz, assim me contaram.
Todos participaram da nova vida dela agora, tranquilos com os bons cuidados que a casa garantia e se alegravam ao vê-la convivendo com os internos.
Com o passar do tempo, um irmão mais velho que ela começou a ter sintomas de Alzheimer, o que levou embora, primeiro, a memória de forma muito rápida e devastadora, logo após atingindo o desempenho motor, fulminando aquele homem de forma aterradora.
Ele, que fora um homem proeminente no município, dentista bem formado, profissional respeitado, político sério e coerente com seus princípios, pai amoroso, homem bom no sentido da expressão, agora se encontrava vítima do tempo. A sua ruína física foi chocante, pois até pouco tempo atrás, as pessoas ainda o buscavam atrás de conselhos, boas palavras, uma verdadeira referência.
Diante do quadro demencial agudo e grave e, não tendo como assisti-lo com a qualidade que a situação exigia, a família também entendeu por interná-lo em um lugar de atenção e cuidados geriátricos.
Quis o destino, para quem nele acredita, ou o amor divino para quem tem fé, que o local de último repouso desse homem fosse escolhido ao lado dessa irmã, onde ela já se encontrava adaptada e feliz e que a família já conhecia bem.
Assim, os dois irmãos conviveram ali, também sempre assistidos pela família, sobrinhos e irmãos, os últimos dias da vida dele, ela reconhecendo mais a presença dele do que o contrário, uma vez que ele já estava em estado demencial muito avançado.
E ela foi ainda mais feliz nesse tempo, tinha o querido irmão ao seu lado, numa virada da história dos dois, quis o destino que partilhassem novamente o mesmo teto, a mesma vida, a rotina, os dois ali, congregando a família, situação cujo o propósito é tão cristalino e, ao mesmo tempo, tão incompreensível.
O irmão forte, independente, importante e potente na construção da sua história e a irmã frágil e enferma, os dois em igual condição, agora juntos.
Oh, mistérios do destino, insondáveis aos nossos olhos terrenos, mas cuja sincronicidade é um sinal potente e didático e que nem sempre, na dinâmica do dia a dia, percebemos.
Assim, também sincronicamente, logo essa família seria marcada pelo COVID, que veio para o mundo todo levando os mais frágeis primeiro, colhendo também os fortes, deixando um rastro de perdas e que acabou por atingir, primeiro o Derqui, logo a outra irmã - a que cuidava de todos - e o marido dessa. Mas isso foi depois.
Com o estado de saúde agravado irremediavelmente, foi levado ao hospital, onde não resistiu ao rigor do vírus e acabou por falecer em uma madrugada fria e triste.
Pela manhã, foram à casa geriátrica para informar à irmã sobre a perda do irmão, tudo com muito cuidado, para não levá-la ao desespero e nem à desesperança. A outra irmã, que mais tarde também seria vitimada junto com o marido por essa praga mundial, escolheu palavras, falou mansamente, fez toda uma ronda pra chegar à triste notícia: seu amado companheiro de última morada, partira.
Ela, no entanto, diante da comunicação do falecimento e do convite para ir ao velório despedir-se do querido irmão, disse calmamente e sem surpresa: “Não vou, não preciso. Ele veio até mim esta madrugada, conversamos muito e ele me disse que estava partindo. Já nos despedimos.”
Novamente, é preciso fazer a reflexão sobre a partida para o mundo espiritual daqueles a quem amamos, as “coincidências” e os caminhos que se trilha até o desenlace.
A gente esquece de fazer essa reflexão, de olhar para o todo, não só para o final da vida daquele ser amado que cruza o véu da vida com tamanha elegância, que se preocupa em se despedir e dar conforto aos que ficam ainda vivendo a experiência terrena.
Agindo dessa forma, o Derqui honrou, ao seu modo, aqueles que o acompanharam desde a infância, com quem partilhou o mesmo pai e a mesma mãe, seus irmãos, invocando em sua hora final os sons da casa materna, as doces lembranças da vida familiar, as dores do crescimento, os problemas que toda a família enfrenta, as perdas, as alegrias e as vitórias de toda uma existência...
Honrou também os filhos, a mulher, os amigos, naquela hora que é a única certeza da vida e que, mesmo assim, assombra todos os viventes no mundo físico e que é tão pouco aliviada, nada entendida, quase nunca aceita, porque poucos recebem esse último gesto de amor, de despedida como esse homem generoso e bom, que avisa, vou partindo, amo vocês.
Ou talvez, todos tenhamos tido alguma vez essa ocasião em nossas perdas e apenas não ouvimos ou não percebemos os incríveis sinais que apontavam para essa despedida que seria atenuada se não vivêssemos tão focados no mundo material e na lógica da vida. Isso eu não sei, mas o que, quanto mais eu penso nisso, eu desejo é não perder nada, é estar atenta aos meus amores para receber a generosidade de um olá, de um adeus, de uma palavra que me indique que tudo estará certo e bom, no caminho sem volta dessa vida.
E, tão puro o coração daquela que sempre fora a frágil, a necessitada de cuidados, a irmã delicada e doentinha, que ela mereceu ser a destinatária desse último adeus, desse conforto, da certeza de uma viagem feliz e adequada desse irmão.
Mari, é seu nome e, entre todos os que o amaram e a quem ele amara, ela foi a companheira da sua última jornada e do seu adeus mais sentido, mas também a ela foi dada a certeza de que este partia e que isso não era um problema, apenas o ciclo da evolução que se renovava.
Os humildes serão exaltados...não é isso que disse Jesus? A força deste adeus, entregue somente a ela, companheira dos primeiros e, por fim, dos últimos dias desse irmão, certamente tem um significado para além do que podemos acessar, mas se nada que acontece ao homem que não seja próprio do homem e da sua evolução, como banalizar esta convivência no asilo, orquestrada por alguma força invisível e, mais ainda, esse adeus tão firme que tranquilizou o coração e não deixou dúvidas do que se tratava?
Como seria maravilhoso que conseguíssemos acreditar que na morte não há temor, que não precisa de susto ou sobressalto. Que a hora derradeira chega cheia de amparo, com entes espirituais que vêm fazer a condução e que permitem a despedida e o desenlace dos afetos com calma e tranquilidade.
Vai restar a ausência física, os sons, os abraços, mas se a jornada foi cumprida e encerrada como deveria ser, entregar-se ao desespero ou à revolta não será inteligente e nem coerente diante daquele que tão mansamente partiu, deixando um recadinho: eu só estou indo, mas vocês também virão.
Eu penso na graça concedida àquele irmão que também recebeu essa bênção quando, ao deixar este plano, pode mostrar a todos e não só à irmã, a quem incumbiu de passar a mensagem adiante, que estava partindo com consciência, esclarecendo com isso que já falava de novo, já andava, já voltara ser, agora no plano espiritual, o homem que todos conheceram, respeitaram e amaram.
Quanta alegria em saber que o pai, o irmão, o esposo, o avô, o amigo partiu curado, retornado ao seu melhor estado e que, homem compassivo e generoso que sempre fora, por fim, deixava uma mensagem que não há como ser esquecida: estou indo e sei disso, mas vamos nos reencontrar e será bom, acreditem.
Assim, olhando o final da vida desse homem, como o desígnio da vida levou-o para perto da irmã e dos outros familiares por consequência desse convívio no asilo, eu, humildemente concluo que esse delicado adeus dito em sonho, não tinha como objetivo apenas os ouvidos dessa irmã, mas era endereçado a todos os seus amores para lembrá-los que é fundamental que vivam bem, aproveitem seu tempo aqui, se reconectem com seus queridos, não desperdicem um só minuto.

Luciane da Rosa Lengler

Sobre Luciane da Rosa Lengler

Escritora de crônicas sobre a vida, o tempo e as memórias que atravessam gerações.

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