
Dalva

Luciane da Rosa Lengler
15 min de leitura
A estrela Dalva no céu desponta e a lua anda tonta, com tamanho esplendor. E as pastorinhas, pra consolo da lua, vão cantando na rua, lindos versos de amor.
Algumas enfermidades demoram a fazer o seu triste trabalho, consumindo a vida daquele ser amado diante dos olhos da família e, apesar de quantos cuidados e tratamentos sejam buscados, o fim vem chegando lento mas inexorável.
Mas isso é apenas um pedacinho de uma vida inteira, não se pode definir uma existência inteira pela parte final.
Mesmo enfrentando a degeneração do corpo físico, algumas almas, já quase livres das correntes da matéria, conseguem perceber e aproveitar a oportunidade para ampliar laços de afeto, passar ensinamento e construir pontes invisíveis para seguir em comunicação pelos canais de alma. E essa comunicação será eterna, uma vez que ressoará por canais invisíveis e imateriais.
Olhando por esse lado, o triste enfrentamento de uma enfermidade nunca deveria ser visto como uma maldição ou um castigo. Talvez possa até ser encarado como uma integração entre a morte e a vida, um estado intermediário entre um e outro ciclo, partes de inúmeras existências. Agora, se o enfermo tiver vivido a vida de forma coerente com seus princípios, morrerá também coerentemente.
A mãe da Raquel, a filha é quem me conta essa história, foi uma dessas pessoas que precisou enfrentar com heroísmo uma terrível doença. Com um nome poético, que evoca uma linda música carnavalesca, a Dalva era mesmo a estrela da família. Há tanto significado e simbologia nas estrelas, brilho no céu escuro, altivez, permanência, constância, mistério... a Dalva era, principalmente, estrela guia.
Durante o período da enfermidade, mãe e filha se reconectaram, permitindo-se um resgate que só a dor física de uma e a dor espiritual de outra pode promover. A separação iminente pela doença como o início do fim da existência como a conhecemos traz muito aprendizado. Há relatos maravilhosos trazidos por médicos, psicólogos e outros profissionais sobre a evolução de pessoas condenadas por uma doença. O meu preferido é “De frente para o sol” do psiquiatra americano Yrvin D. Yalom, que li e releio sempre que o medo da morte queima meus olhos como o sol olhado de frente.
Assim enferma e quando não havia mais o que fazer para dar o conforto da dor, a família resolveu permitir que a equipe médica colocasse fim ao sofrimento pela sedação. Felizmente, esse procedimento existe e permite que a pessoa amada pare imediatamente de sofrer, porém, infelizmente, também a colocará numa espécie de coma, um sono profundo onde aguardará a hora de partir em paz, sem aflição. A família sabia disso e, tendo em vista apenas o alívio, optou por oferecer este alento para a amada que sofria.
A Dalva sabia disso. Quando consultada se queria a sedação, respondeu afirmativamente, apenas pedindo um tempo para ver todos aqueles que amava. Um a um vieram netos, genro, filhos, enfim seus afetos. Acompanharam esse momento de despedida a filha e o marido.
Deles, ela não se despediu. Apenas, pouco antes da sedação, ela pediu que a filha guardasse seus óculos.
Três dias depois da partida, essa filha, que ainda sofria pela perda e se perguntava por que a mãe não se despedira dela como fizera com todos os outros amores, sonhou.
Sonhou?
Neste sonho, a mãe a chamava e ao pai, seu marido, e avisava que, neste momento, faria sua despedida deles que a acompanharam em toda a jornada final.
Então, os três estavam em frente à Igreja Matriz de Encantado, logo abaixo da escadaria. Convidados por ela, subiram a escadaria até a porta principal que estava aberta, de onde se podia ver o altar mor. Mas, ao invés de bancos, o que havia dentro da nave da Matriz eram inúmeras portas, todas fechadas.
Ali, na entrada, ela se despediu, nunca saberemos o que o coração dela falou ao coração de cada um dos dois, mensagens que ficarão gravadas apenas na alma de marido e filha, ressoando até o momento de serem recebidas, e adentrou à Igreja. A porta se fechou, deixando os dois, agora consolados com o adeus simbólico e com a certeza de uma caminhada rumo a um bom lugar, um lugar sagrado e seguro, onde não há dor nem medo.
A escadaria, as portas e os óculos. Recomendados à filha, os óculos ficaram com ela, que ainda não havia entendido o simbolismo desta lição. Pensei em escrever “última lição de mãe”. Desisti antes de digitar, pois logo lembrei que isso não seria verdadeiro. As lições de uma mãe não terminam nunca, elas acompanham pela vida inteira e vêm até os filhos claramente, sempre e a todo o momento. Seja por uma lembrança, seja por um ditado popular tantas vezes repetido, por uma canção, uma oração aprendida na infância...enfim, não existe isso de última lição.
Assim, a Raquel me conta que, ao tempo em que a mãe partira, ela começou uma busca interior por uma filosofia de vida que já despontava em seu coração, um chamamento a práticas mais amorosas, uma procura por caminhos de evolução, de conexão com o sagrado ser, enfim, uma troca de paradigmas de vida que brotava em seu íntimo.
Nessa jornada de subir a escadaria da vida e do conhecimento, entre muitas portas que poderia escolher, a que ela escolheu, em primeiro lugar, foi a formação no conceito de justiça restaurativa, prática que se iniciava no meio jurídico.
Essa maneira de se buscar a resolução de conflitos judiciais busca a reparação do dano levado à justiça pela perseguição da paz, pela prática da afetividade que pode proporcionar algum diálogo entre vítima e agressor, sendo que ambos são convidados a assumir pessoalmente a responsabilidade pela solução do conflito.
O mais importante é que ação restaurativa respeita igualmente as necessidades de cada envolvido, pelo exercício de inteligência emocional. Na ocasião, era um projeto ainda embrionário na justiça gaúcha e muito distante do interior do estado e, essa foi, justamente, a primeira porta que se abria para o que foi a grande transformação profissional, pessoal e filosófica da Raquel.
Ora, o manual desta prática chama-se “TROCANDO AS LENTES”. Os óculos da mãe fizeram todo o sentido, foi preciso trocar as lentes para ver o que a vida estava exigindo, ver o mundo sob outros prismas, assumir a necessidade de dar sentido a cada ação, a cada gesto. E, aparentemente, aquela estrela luminosa chamada mãe sabia disso tudo e, entregando à filha suas lentes, entregou-lhe também um novo olhar que a obrigaria a abrir outras portas, que agora parecem infinitas, tais as possibilidades que vão surgindo.
Os budistas acreditam que não existe um fato de vida que não seja pedagógico. Assim, por trás de cada fato há um símbolo que, se bem analisado e compreendido, elevará o ser, despertando nele a noção de unidade. Homem e universo, divino e terreno, mãe e filha, tudo em sincronia perfeita, comunicação infinita.
Pensando nisso, as portas no interior da nave da igreja parecem simbolizar conhecimentos sagrados, um convite à busca da regeneração pessoal e coletiva, que leva a outras portas que, uma vez abertas, convidarão a outras práticas que, combinadas, podem mudar vidas, adicionar responsabilidades, promover conexões, permitir reconciliações, curar feridas emocionais e quem sabe o que mais, as portas não foram todas abertas ainda.
Essa sincronia entre mãe e filha me ensina que, para quem busca a essência e o propósito de vida, algumas vezes ainda desconhecido, mas latente na alma do buscador, se revelam por um sonho e um par de óculos transferidos do olhar da mãe para o olhar da filha, que se voltará a sua essência, como a ensinar: minha filha, olhe o mundo com teus próprios olhos, mas mude as lentes e verás que há mais a ver, a aprender, a transformar, escadas a subir, portas a abrir.
E as pastorinhas, agora refletindo o brilho dessa estrela, vão cantando, na rua, nos consultórios, nas salas do fórum, nas escolas e pelo mundo afora, lindos versos de amor.
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