
Claudio

Luciane da Rosa Lengler
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Foi num verão que eles se “re” conheceram sem, nesta vida, jamais terem se conhecido. Não havia nada em comum entre eles, não poderiam ser mais diferentes um do outro. Mas, em algum lugar dos seus corações, carregavam a semente de um amor improvável, em tudo impossível.
Ele, filho de fazendeiros ricos, amante de música sertaneja, politicamente de direita, criação patriarcal, ruralista, vindo de um longo noivado.
Ela, naquela época, petista de carregar bandeira, amante de MPB e rock, apreciadora de boa e progressista literatura, com ideais feministas e bastante urbana, saindo de uma relação abusiva, ainda muito sestrosa e pouco confiante no amor.
Pois não é que, caminhando num calçadão que separava a areia do asfalto à beira mar de uma praia famosa, ela viu, no paseio do outro lado da rua, um grupo animado de rapazes.
Nunca soube dizer o que a fez convidar a irmã e a amiga que passeavam com ela a atravessarem para aquele lado da rua, já indo, rindo e animando as outras que a seguiram, estavam na praia para isso, para conhecer gente, quem sabe uma turma animada não seria companhia perfeita para esse verão?
A turma era grande, música alta, mais ou menos vinte homens, todos jovens que se espalhavam na calçada do restaurante fazendo algazarra, alguns ocupando as mesas, outros em pé, festejando a vida e a juventude.
Ninguém as viu atravessando a rua, menos ele que, vendo-as, levantou-se do lugar onde estava sentado e veio ao encontro dela, olhando-a diretamente nos olhos, como se a conhecesse de muito tempo.
Ela o recebeu sorrindo, como se também o conhecesse e, sem nenhum estranhamento, sem nenhuma surpresa, deixou-o guiá-la para sentar ao lado dele.
Tudo aconteceu com tanta naturalidade, como se entre eles houvesse um encontro marcado: ali naquele lugar, naquele dia e hora, ele estaria esperando por ela e, ao se verem, cruzariam a rua animados e ele, então, a traria para o seu lado, de onde não a deixaria sair mais, pelo menos enquanto durasse aquele verão.
A partir desse momento de “re” encontro, os dias que se seguiram foram de muita alegria, de riso e paixão. Não se desgrudaram mais, ele a buscava no hotelzinho mixuruca onde ela se hospedara, iam para a praia, para festas, passeavam de mãos dadas e, rindo e festejando, partilharam segredos, histórias de vida, tudo sem pressa, apenas permitindo que o amor faceiro, espontâneo em tudo, brincalhão, mas muito ardente, vivesse sua plenitude.
Mas apesar da leveza destes dias que pareciam um sonho, ambos sabiam que não havia chance para eles, que tudo isso que viviam ali era apenas um amor de verão. Quando tudo terminasse, retornariam, cada um, para sua vida, suas famílias, seu trabalho, lugares onde não caberia esse amor ideal, amor platônico.
Aceitaram desde o início o fato de que, o que lhes permitia viver aqueles dias como se o tempo estivesse parado, suspensos os problemas, as dúvidas, as rotinas...tudo parado para deixá-los viver em paz aquele romance de livro, tinha prazo de validade. Eles intuíam que viviam uma utopia linda, um verão para ser lembrado, mas sem chance de sobreviver à realidade da vida de cada um.
Mas a realidade era um problema para depois. O agora era lindo e cada hora juntos deveria ser muito bem aproveitada, sem urgência, sem afobação, vivida minuto a minuto.
Como estes dois perceberam a preciosidade deste encontro, se não pela intuição que parece orientar os melhores acontecimentos da vida de cada um, assinalando um momento raro e único como um tesouro a ser aproveitado no máximo?
E assim foi. No dia em que ela deveria partir, ele mandou um motorista levá-la. Ela nunca imaginou que fosse para saber onde encontrá-la logo em seguida, apenas um pretexto para não perdê-la de vista enquanto durasse o verão.
Ela tinha planejado o final daquelas férias em outra praia, para brincar o carnaval com outras amigas, antes da rotina de trabalho e estudo se impor novamente em sua vida. Mas ele tinha planos de estender a mágica experimentada a dois e planejou encontrá-la uma vez mais, espichando tanto quanto possível aquele encontro raro, inexplicável pela força que se impôs naqueles corações jovens.
E assim fez, um dia depois que ela partiu, ele se apartou da turma que o acompanhara e a seguiu, surpreendendo-a.
Ela, que tinha o coração ferido e arisco, aceitou tudo sem medo e se permitiu mais esses dias de paixão. Estavam tão esquecidos da vida que também foram-se esquecendo das promessas de acabar com aquilo junto com as férias. Mas quem pode culpá-los? Como esperar que fossem leais à promessa tão dura e impossível de cumprir? E, mais, o que teriam a ganhar sufocando aquilo que era tão natural, tão simples e inocente, como se estivesse escrito em algum roteiro de um filme romântico bem bobinho e cuja história ia ser considerada inverossímil de tão óbvia e previsível? Mas, prometiam um para o outro, isso termina aqui, na praia, neste verão, no último beijo da partida.
Mas não terminou. Não ali e nunca pelas razões que imaginaram. Depois do carnaval, dessa vez em num hotel chique e caro – onde ela nunca sonhara botar os pés, longe que estava de sua condição e possibilidades – aí sim, chegou a hora de se separarem cada um para o seu estado, cada um para a sua vida. A separação não foi fácil, muitos beijos, muitos planos de se esquecerem que nenhum planejava cumprir, sabendo que não havia como.
E assim, aquele ardor que experimentaram se impôs, não havia mais como seguir a vida como se nada houvesse acontecido. Então, romperam as promessas de enterrar na areia o amor que nascera na praia e a vontade de lembrar aqueles dias de paixão foi a razão que fez que seguissem se falando por telefone quase todos os dias, trocando cartas e pequenos mimos enviados pelo correio...
No entanto, o final estava anunciado e eles sabiam, inconscientemente sabiam, hoje ela entende, tudo estava escrito.
Até hoje, ela e quem sabe dessa história, custa a acreditar que o destino pode estar escrito na palma da mão, ou sabe-se lá onde e que uma verdadeira estranha possa predizer um futuro inimaginável e insondável de um jovem, alertando o casal apaixonado com uma sentença de morte.
Acontece que um dia, mal começada essa trágica história, na beira da linda e festiva praia onde se encontraram (ou reencontraram se se imaginar que esse amor era um retorno de outra vida), entre risos e música, uma cigana se aproximou do grupo que se divertia sem imaginar o terrível anúncio que ela iria apresentar sem que ninguém tivesse solicitado.
Ela tinha muito medo de ciganas, aprendera na infância que essas mulheres misteriosas eram perigosas, que roubavam as crianças e anunciavam o futuro, muitas vezes sombrio, não valia a pena ouvir o que tinham a dizer.
Assim que a mulher se aproximou do grupo, logo começou a ler as mãos de todos que ouviam as premonições entre gracejos e deboche próprio da juventude que nada teme. Ela não sabe se a mulher acertou algum dos vaticínios que ofereceu em troca de algum dinheiro aos jovens que se divertiam ali, não ouviu porque, por segurança, se afastou do grupo, espantou a cigana, não entregando a mão para a leitura do destino. Ele, debochado e brincalhão, entregou a mão à cigana.
Sem lhe dizer uma palavra, a mulher, ela nunca esquecerá aquele rosto, ficou petrificada e, arreganhando a boca cheia de dentes de ouro, nada disse a ele, pedindo para falar a sós com ela. Se aproximou, insistiu e, mesmo diante de todas as negativas, falou, fazendo-a ouvir à força seu terrível anúncio.
Começou por aconselhar que ela se afastasse dele, que o que vivesse dali pra frente seria de dor e sofrimento. Diante da incredulidade, sem vacilar, informou que ele jamais seria dela, que não havia futuro para aquele amor.
Ela respondeu: “conta uma novidade, eu sei que não ficaremos juntos. Ele não é para mim e eu não sou para ele. Vamos nos separar no final do verão, isso eu já sei, já combinamos. Mas estou feliz agora, depois me recupero, pelo menos vou viver essa paixão sem futuro, me deixa. Aliás, eu não te pedi conselho nenhum, por favor, te afasta de mim, me deixa só que não quero ouvir tuas mentiras.”
Mas a mulher estava obstinada com a verdade que lera nas mãos dele, precisava falar. Agarrando ela pelo braço, continuou a falar, com os olhos vidrados...Nessas alturas, ela já estava com medo da mulher, intrusiva e aterradora, é doida, pensou...
Mas a cigana continuava:
Ele não será teu nem de ninguém. Os dias dele estão no fim, ela disse afinal, para se fazer entender sem deixar dúvidas.
Como assim? Um jovem de 26 anos, cheio de vida e muito saudável, esportista, campeão de hipismo rural? Essa mulher só pode ser louca, ou quer tirar dinheiro para algum feitiço que vai apresentar em seguida. Não se pode confiar nessa gente, bem que eu não queria conversa com ela, pensou.
A diaba da mulher seguia falando: Pois é verdade e assim será, foi o que ela disse. Ele vai partir desse mundo logo e, pior, será fazendo algo que gosta muito.
Ele, que, de longe viu o medo nos olhos dela, veio em seu socorro e, ao ouvir isso, escolheu fazer graça, como era do seu jeito mesmo e foi logo desanuviando: vou morrer nos braços dela, então. Mas a cigana não cedeu ao bom humor dele e preferiu reforçar seu vaticínio medonho: Não, ela falou. Não será assim. E ela vai chorar esse amor por muito tempo. Disse isso como a aconselhar ele a se afastar dela, para poupar a dor que sabia certa que ela sofreria. E, insistente, reforçou o conselho inicial: Por isso é melhor se afastarem logo.
Os dois riram e decidiram que a previsão da cigana estava muito torta, onde já se viu, mulher agourenta. Só pode ser um golpe para tirar dinheiro, logo ela vai vir com um feitiço que vai custar caro, mulher golpista. Mas a tentativa de golpe não aconteceu, ao contrário, ela não falou mais nem uma palavra, abatida e cabisbaixa, se afastou do grupo em silêncio.
E, como todo o jovem que ignora os pavores da morte, todos se esqueceram do assunto.
Assim, terminado o verão, o amor não se acabou como deveria. Encontraram-se mais uma vez ainda, desta vez na terra dele, para onde ela foi em troca da promessa que, a próxima, seria na sua terra, promessa jamais cumprida, porque esse dia nunca chegou.
Um pouco antes da predição da cigana se confirmar, ela, que andava perdendo pares de brincos, sapatos, agulhas de tricô, ficando sempre com apenas um de dois, pares desfeitos sem nenhuma explicação, em um certo dia, por três vezes seguidas, desmaiou.
E, em todas as vezes, o que via durante a falta de consciência era um cavalo branco que tombava sobre ela e a esmagava. Nos três episódios, ao retornar, acordava murmurando: o cavalo... quem ouvia, não entendia nada, ela era absolutamente urbana e, para falar bem a verdade, o tamanho e a força dos cavalos a deixavam sempre desconfortável. E, saindo do transe, ela repetia que um cavalo branco a esmagava, a imagem era tão forte e tão real que, nas três vezes, ele caía mole e frouxa no chão, apenas com a lembrança do rosto do cavalo junto ao seu, olho de um mirando o olho do outro. Uma visão apavorante, mas até o momento para ela, sem sentido. Jamais pensou que, talvez, essa imagem fosse a última que os olhos do seu amado veriam nesta vida.
E para completar a sequência de premonições, em razão dos desmaios, nesse mesmo dia, acabou perdendo um pé de sapato na rua, último par desfeito. Ou penúltimo, porque o par principal dessa história também estava por ser separado, desfeito no mundo físico para sempre.
Claro que ela nunca pensou em nenhum desses acontecimentos como premonição. Na verdade, os jovens não pensam na morte e, se pensam, é na nos dos outros, nos mais velhos e doentes. Aos vinte anos, somos todos imortais ou pensamos ser, o jovem desfruta maravilhosa sensação de poder, de permanência, acha que para tudo há um jeito, nada é definitivo. Como a música dos Titãs, que tocava insistentemente nas rádios naquela época, “somos tão jovens, temos todo o tempo do mundo”.
Três dias após os desmaios, um domingo, o domingo mais triste da vida dela, ela soube que ele tinha partido desse mundo, fazendo o que mais gostava, cavalgando um lindo cavalo branco que tropeçou e caiu sobre ele, matando-o na hora.
Quem atendeu o telefone com a trágica notícia foi a irmã dela. O grito da irmã de “a cigana, a cigana” foi o suficiente para ela entender tudo, é como se o coração dela lhe contasse, aos borbotões, tudo o que acontecera, ela já sabia que um cavalo branco havia sido o cruel personagem adivinhado em tantos avisos e premonições, que, inclusive, a perda dos pares vinham alertá-la desse desfecho.
Um grande luto se abateu sobre ela, ela que era uma moça alegre e festeira, se tornou triste e reclusa, os amigos a convidavam para sair, ir ao cinema, a bares, mas o esforço era grande demais, a dúvida sobre os avisos que recebera e não fizera caso, poderiam por acaso, ter salvado a vida dele? Essa pergunta a consumia e, junto da dor da perda, vinha uma culpa sorrateira que atormentava seu coração já tão partido.
Quando ela conta essa história, mais de trinta anos passados, ela já sabe que não havia nada que ela pudesse fazer para evitar a precoce partida dele deste plano, ela entende que a cada um é dada a vida como determinada no plano superior. O livre arbítrio existe e se aplica apenas em como vamos levar eticamente essa existência, pelas escolhas que cada um fará nessa caminhada, para uns mais longas e para outros, como ele, mais curtas, porém plenas e cheias de vida.
Hoje, ela já sabe também que o tamanho da vida vivida não se conta pelo tempo do relógio, mas pela intensidade do que se viveu e produziu, tanto de bem como de mal. Uma vida bem vivida é a marca da boa morte. E a dele, certamente, foi uma linda partida para o outro plano, sendo que, como último ato, foi um grande e inesquecível amor.
Aquece o coração dela a certeza de que breve encontro de corpos e almas tão curto, mas tão febril e explosivo, aquele amor de rastilho de pólvora, de corisco, faísca que explode e corre iluminando, queimando, ardendo e se apagando tão rápido que parece que nem aconteceu, foi um presente e não uma maldição, como ela pensou no início.
Dois anos depois da partida dele deste plano, ela viajou para visitar a família dele que ainda sofria pela dor da perda do filho amado, alegria da casa, barulhento e agregador, que deixara um vazio que não se preenchia de jeito nenhum. Assim, atendendo ao convite desta família que aprendeu a amar, foi, pela segunda vez, à casa dele, desta vez para tentar encerrar o luto que a machucava e lhe tirara a alegria de viver.
Nesta mesma ocasião, uma médium amiga da família apareceu por lá para atender a família. Ela também se beneficiou da caridade desta irmã que trouxe consolo e orientações preciosas para o enfrentamento do luto de todos os que a ouviram e participaram das vivências evangélicas que ela propôs.
No dia em que ela deveria partir de volta para sua casa, ao se despedir de todos, a médium chamou de canto e disse-lhe: “chega de sofrer, é hora de retomar teu rumo, olha para a frente, tu tens muito o que viver. Hoje mesmo, tu vais encontrar no teu caminho o homem com quem tu vais dividir a tua vida. Ele também será um grande amor e, com ele, tu vais construir uma família que será abençoada.”
Ela, novamente, não acreditou de imediato, mas ao desembarcar do avião, no saguão do aeroporto havia alguém esperando por ela para darem início a outra página da história dela, desta vez com final feliz.
A coincidência de ter ouvido dentro da casa dele essa predição faz com que ela acredite até hoje que foi ele que, cansado de vê-la chorar escondido, resolveu soprar no ouvido da médium um recado de que haveria um recomeço de paz para ela, assim se despedindo e a libertando para viver feliz o tempo que lhe restasse.
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