
Maria Luíza

Luciane da Rosa Lengler
15 min de leitura
“Ei, Jude, não tenha medo
Você foi feita para ir lá e conquistar
No minuto em que você deixa ela te atingir Então você começa a melhorá-la...”
Pense numa família feliz, o casal jovem, dois filhos lindos e perfeitos, saem uma noite para comemorar alguma coisa, voltam e vão dormir felizes.
Na manhã seguinte, vendo que a filha de quinze anos não levanta para o café da manhã antes da escola, a mãe vai, apressada, ao quarto dela e percebe com horror que ela falecera durante a noite, sem que estivesse enferma, sem que tenha tirado a própria vida ou sem que tivesse sofrido qualquer violência. Apenas partira no silêncio e quietude da noite.
Essa tragédia aconteceu com os queridos Maurício e Karla e, embora signifique o maior terror para qualquer pai ou mãe, avó, tio...essa chegada silenciosa da morte, colhendo aquele que amamos e que pensávamos que estava protegido no quarto ao lado, bem alimentado e aconchegado em uma boa cama, em segurança, levando embora sorrateiramente, sem aviso nenhum, sem chance de defesa, não foi um pesadelo.
Também não era esperada, a menina era saudável, feliz. Adolescente cheia de vida e planos, enfrentava os desafios da juventude, mas nada em sua curta vida denunciava alguma enfermidade que anunciasse uma partida tão prematura.
Mesmo contra todas as probabilidades, em uma manhã de março, meus amados amigos se viram enfrentando essa partida sem aviso, sem despedida, sem anúncio. Ainda doentes de dor e desespero, a levaram para a cerimônia final, receberam o amor e o conforto que era possível diante da estupefação geral daquela partida inacreditável, os colegas de escola, amigos, professores...todos incrédulos com a desfaçatez da morte de vir colher da vida aquela menina doce, delicada, meiga e na flor da idade.
Eles contam que, em algum momento daquela noite, os dois se acordaram sem motivo aparente e, amorosamente, se abraçaram, ficaram assim até o sono retornar. Sabem que esse despertar teve algo a ver com a partida da Lulu, mas já não sofrem pensando que poderiam ter evitado o desfecho, caso tivessem ido ao quarto ao lado. Hoje, o sentimento que explica esse despertar incomum, é de que, delicadamente, ela veio se despedir com a mesma doçura com que partira.
No entanto, para os pais amorosos e presentes na vida daquela filha, não havia consolo, nem entendimento possível, apenas a dor maior reservada a um ser humana que é a perda de um filho. Em algum momento dessa perplexidade dolorosa e desesperadora, a mãe pediu à filha, dizendo: já que não vamos poder nos falar mais, eu te peço que, quando quiseres me dar um sinal de que estás perto de mim, me mande uma borboleta azul.
Nem ela sabe explicar o porquê da escolha, apenas sabe que foi isso que ela e a filha combinaram naquela hora em que, apesar da incredulidade e da revolta contra Deus e contra toda a forma de fé, o amor de mãe foi mais forte e fez-se este pacto de comunicação.
Desde então, a mãe tem visto inúmeras borboletas azuis, sempre em ocasiões especiais, ou quando está muito triste, ou quando a família se reúne alegremente, quando recebe uma visita especial, enfim...
Mas assim mesmo, esse coração de mãe ferido e atormentado de dor não consegue se alegrar como seria de se esperar por estar recebendo notícias de seu amor que partiu.
Outro dia, eu estava dirigindo numa estrada rural e, bem em frente ao para-brisa, uma borboleta azul passou graciosa, voando e borboleteando na minha frente e eu pensei: a Karla vai me ligar... Eu sabia que a borboleta azul era a Lulu, esse era o lindo apelido da menina, fazendo a conexão entre sua mãe e eu. Isso aconteceu outras vezes entre nós e já nem causa mais espanto, só um leve sorrido e um: olá, Lulu, sua danadinha. Quando atendi o telefone, logo falei da borboleta, depois me dei conta de como esse sinal está naturalizado: borboleta azul=Lulu. Mas isso é agora, muitos anos passados.
Quando fazia um ano de sua morte, os pais se encheram de coragem e resolveram esvaziar seu quarto de moça, começaram pelo roupeiros onde ainda estavam as roupas com etiqueta compradas em uma viagem pra Disney em comemoração dos seus quinze anos, que acontecera um pouco antes do desencarne.
Ensacaram tudo e prepararam para doar, pois sabiam que esse seria seu desejo, humanista e atenta aos pobres como ela era. Retiraram os enfeites, muita coisa dos Beatles, sua banda preferida, leram cadernos, anotações, bilhetinhos, cartões...reviram fotografias, sentiram cheiros, descobriram inocentes segredos, choraram muito e reviveram toda a dor da perda.
Quando terminaram o enfrentamento dessa tarefa dolorosa e sofrida, a mãe pegou as doações e, para fugir e chorar mais um pouco sozinha como muitas vezes fez durante aquele primeiro ano e costume que ainda agora mantém, saiu de casa para entregá-las no hospital de câncer infantil onde a filha – souberam depois da morte – era voluntária.
O pai ficou sozinho no quarto, olhando para o vazio que só aumentou com a retirada dos objetos de sua amada filha e, em prece, pediu: “filha, hoje soube um pouco mais de ti, descobri afetos e interesses teus que me escaparam enquanto estavas aqui. Matei um pouco a saudade da tua doçura e da tua luz. Faltou algo? Se houver algo mais que queiras me dizer, diz agora, quero te ouvir”.
Em frente à cama dela, onde o pai estava sentado, havia uma parede pintada de rosa pink com tinta fosca, em cima de uma escrivaninha. Olhando para o vazio da parede, o pai começou a ver, pela mudança da luz do dia que já ia entardecendo, um pequeno brilho, cor de grafite que parecia revelar uma escrita que ninguém jamais vira, mas que estivera ali o tempo todo, porque estava escrito com a letra dela a lápis. Alucinado e cheio de espanto, ele foi iluminando a parede e a seguinte frase anotada na parede rosa e que segue lá para quem quiser ver, foi-se revelando:
Está em inglês: “By living in the moment, Living my life, Easy and breezy, With peace in my mind, With peace in my heart, With peace in my soul, Wherever I'm going, I'm already home.”
Mal traduzindo, quer dizer: “Vivendo o momento, vivendo minha vida, fácil e alegre, com paz na mente, com paz no coração, com paz na alma, onde quer que eu vá, eu já estou em casa.”
É um verso de uma música Do cantor americano Jason Mraz, “Living the moment”, depois se soube. Todas as meninas escrevem em seus cadernos, diários, paredes, orelhas de livros, enfim em qualquer lugar, versos de músicas que adoram ouvir. Mas o que torna essa mensagem tão fortemente verdadeira como resposta para a súplica do pai e de todos que se consolaram com ela é o sentido das palavras e sua descoberta de maneira tão significativa no quarto da menina, como uma carta deixada para o futuro, entregue no dia e hora certos.
Um outro verso, não anotado na parede, fala assim: “E se eu adormecer, sei que você será aquele que irá me lembrar.” E como esquecer dessa menina, eternizada na mais pura e terna juventude, adormecida no quarto ao lado, tudo para nos lembrar da fragilidade da vida física que se opõe à força que ela nos anuncia desde o mundo espiritual, de onde se comunica com tanta graça e leveza, sinais que já mostrava em vida?
Parece que, a partir dessa mensagem revelada aos olhos do pai primeiramente e depois de quem quisesse ver (até eu vi), a partida da nossa querida Lulu, tão precoce, tão inesperada, tão doída, de alguma forma fez sentido. Ela não era para esse mundo mesmo, ela veio só de passagem pra ensinar tanta coisa pra tanta gente e que ainda estamos aprendendo e parece que sempre há mais, seja pela aparição de uma borboleta azul em alguns momentos, seja pelas mensagens que sopra ao ouvido do pai, seja pela música “Hey, Jude”, como vou contar agora, seja avisando, em mensagem mediúnica ao pai, sobre a chegada do momento de partida da minha mãe, pedindo que a deixássemos partir sem drama, eis que o momento estava por chegar.
No dia do velório da minha mãe, que amava esta menina e que era amada por ela, fato que sempre nos intrigava, uma menina que não era parente, ser tão devotada a uma senhora idosa, ao ponto de andarem sempre que possível de braços dados e aos cochichos e risos...Pois bem, no dia do velório, minha amiga, ainda enlutada, fez um desafio pra minha mãe, disse que, se era verdade que havia um outro mundo onde as pessoas amadas estão a nos observar e esperar, que pedisse à filha lhe mandasse um sinal da outra dimensão onde as duas certamente se encontrariam naquele mesmo dia, porque isso iria amenizaria a dor da perda ainda sentida.
Cobrou essa missão da minha mãe porque, para além da ligação da velha senhora e da menina, entendeu que, se a Lulu tinha vindo avisar que era chegada a hora da partida da mãe para os filhos quando nada havia a sinalizar esse momento, era por que as duas só poderiam estar de conchavo e segredinhos, portanto que ela, por sua vez, retribuísse o favor e levasse também o recado da mãe para a filha.
Claro que a mãe da Lulu não estava com esse humor, essa sou eu me lembrando das duas, velha e criança, aprontando como se fossem da mesma idade.
Pois bem, a Lulu era louca pelos Beatles, assistira o Paul MacCartney duas vezes ao vivo e se emocionava muito ao ouvir a música que ele escreveu para o filho do outro Beatle e seu amigo, John Lennon, “Hey, Jude”, que fala em ser feliz apesar da dor, etc... Desde a partida da Lulu, essa música, sempre que ouvida, traz a vívida lembrança dela, porque ninguém ignorava ser sua canção preferida e, como se sabe, uma boa música é conexão com o infinito.
Então, estávamos lá velando a minha mãe, quando um músico muito querido da família entrou com sua gaita para tocar músicas de despedida pra ela, que amava cantar e dançar. Iniciou com Mercedida, um tango lindo que ela gostava muito. A segunda música, tocada lindamente na gaita, foi “Hey, Jude”, que assim como a borboleta azul (que sabe quando aparecer e sobrevoar os incrédulos) toca do nada, no rádio, em uma festa, sempre trazendo vividamente a presença dessa moleca que partiu o nosso coração e agora brinca docemente com nossas saudades.
Claro que tudo isso pode ser coincidência, a escrita na parede, a borboleta azul, “Hey, Jude” tocado num velório de velha que nem gostava dos Beatles...até pode, mas eu duvido. Coincidências não existem, o afeto não desaparece com o corpo físico e uma filha amorosa vem, sim, consolar e se comunicar com os pais que a amaram com toda a força do coração.
É nisso que eu acredito e confio, também eu sinto a presença luminosa da nossa eterna menina entre nós, quem sabe aprontando algum desaforo com a minha mãe, debochando ou arremedando algum de nós, só pra fazer graça. E pela borboleta azul que vem, volta e meia, me lembrar que há um lugar de reencontro, onde a saudade acaba e a vida continua.
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