Antônio
Luciane da Rosa Lengler
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Diante dos mistérios da reencarnação, parece óbvio que uma pequena que fixa o olhar em um ponto e reage como se visse ou ouvisse algo que ninguém mais percebe, ou está brincando com algum amigo imaginário ou vive um episódio de comunicação espiritual.
Se nasceu com mediunidade precocemente manifestada, provavelmente seja assim porque carregue algum compromisso de vida passada que a responsabilidade imposta pela comunicação com os mortos a ajudará a resgatar.
A doutrina espírita ensina que a pessoa que enfrenta um desafio como esse deverá ser cuidada e orientada, a garantir que o fenômeno da mediunidade lhe seja tão leve e seguro quanto possível, diante da grandeza da tarefa de ser ponte entre mundos, principalmente quando se revela em momento precoce.
Porém em um ambiente que não tem esse entendimento sobre a vida espiritual, o médium acabará sofrendo desde cedo todo o tipo de preconceito. Os problemas quase sempre começam na própria família e, mais adiante, seguem no mundo exterior, frutos de ignorância e preconceitos compreensíveis, porque a aceitação da ideia de reencarnação e comunicação entre dimensões não é comum, inclusive na maioria das religiões que, diante de relatos de experiências extrafísicas, atribuem significados muitas vezes pejorativos ou relacionam o vidente ao demônio.
Grandes médiuns como Chico Xavier e Divaldo Franco, isso para citar os maiores, contam dessa dificuldade e como lidaram com esse dom grandioso e assustador para os olhos do mundo. E, mesmo eles, respeitados e reconhecidos em sua grandeza, foram vítimas da ignorância e do medo do desconhecido.
Para uma criança, cujo o fenômeno que faz com que veja ou ouça manifestações espirituais que ninguém mais vê e nem ouve fará transparecer aos demais essa vivência que se processa tão inocentemente e atrairá para ela consequências muito severas. Enquanto não manejar o dom com discrição e autoproteção, estará sempre correndo risco de sofrer toda a sorte de violências, desde a verbal por ofensas, até a física.
Para piorar, a constatação de que muito do que ela percebe cotidianamente do mundo é compartilhado pelo restante do grupo, ou seja, muito do que vê e ouve todos veem e ouvem, mas que há outro universo, no qual ela transita e que é só seu e secreto, apesar de tão real e tão vívido como o outro e que ninguém mais compartilha deve ser muito perturbador.
Ela terá que entender que, os adultos que ela espera sejam capazes de ordenar e explicar o mundo, não partilham das experiências que ela vivencia e que caberá somente a ela estabelecer o limite entre o que percebe do mundo e o que os outros adultos não são capazes de vivenciar.
Para quem vê de fora o fenômeno da mediunidade, pode ser que acredite que a mediunidade seja uma graça divina, um presente da espiritualidade, talento a ser invejado por quem não recebeu o dom de ver através do véu da vida física.
Esta utopia está longe de refletir a verdade, pois a mediunidade normalmente se revela como um pesado fardo, um compromisso assumido em outra dimensão e que se impõe na vida atual, desafio aceito antes da reencarnação para expiação de faltas graves e que, como todo o trabalho evolutivo, cobra um preço muito alto, principalmente quando manifestada na infância em um ambiente que não houver nenhum preparo para a orientação sobre as leis universais da reencarnação.
Essa história é sobre uma menina que, sozinha teve que fazer isso sem entender o que a diferenciava das outras pessoas, pois nunca tinha ouvido falar sobre o fenômeno da mediunidade e teve que aprender a lidar com o espanto e o horror que despertava nos demais. A solidão, portanto, foi seu maior desafio, vencido apenas pela presença dos avós em sua infância.
A Sueli me relatou sua vida cheia de desafios, ela nem sabe dizer quando começou a ver e ouvir pessoas falecidas, só lembra que se confundia, às vezes, porque não sabia distinguir os viventes dos espíritos que a cercavam com tanta clareza e que com ela conversavam, causando perturbação nos demais e isolamento do convívio dos familiares e das outras crianças.
A trajetória dela desde menina, tendo unicamente a avó como companhia física mais constante e segura, ensina que a percepção entre o etéreo e o físico atrai toda a sorte de atenção negativa, em parte derivada do medo que as pessoas têm do que lhes é desconhecido e imponderável. Mas essa vida cheia de desafios me demonstra também que pelo amor do divino Mestre, a todo aquele a quem é imposto um sofrimento, também é garantido um auxílio para o enfrentamento dos obstáculos.
No caso da Sueli, esse amparo veio pela companhia de bons amigos da outra dimensão que, entre tantos, alguns eram seus entes amados desencarnados e a quem a criança reconhecia e identificava, companheiros preciosos, presentes como conselheiros protetores que, por algum trecho da jornada, a acompanhavam, oferecendo valioso auxílio. O primeiro deles foi o avô Antônio. Pois essa é a história linda e comovente dela, que me conta como, desde pequenininha, suportou o karma da mediunidade.
Ele partiu de Portugal para viver no Brasil, recém casado com sua Anita, em parte, para se afastar do preconceito que a família tradicional e mais abastada dela demonstrava contra ele, rapaz de origem mais humilde, mas muito trabalhador e seriamente apaixonado pela mocinha rica.
O casalzinho jovem também queria desbravar a terra nova, pois entendeu que aqui era um bom lugar para se começar a vida e construir família e patrimônio. E assim foi, iniciou a vida profissional como comerciante de azeite de oliva em sociedade com um irmão e, com essa atividade conseguiu prosperar e se fazer respeitar, tendo tido até influência política em Ribeirão Preto, cidade que escolheu para criar raízes e família.
Quando faleceu, deixou sua amada Anita, as filhas moças e apenas uma neta, a quem amou de todo o coração. Essa neta era a Sueli que, com apenas um ano de vida, experimentou a primeira de muitas perdas importantes que viriam acontecer em sua jornada de evolução.
A menina, tendo vidência e audição mediúnica, desde muito pequena percebia a companhia do avô que lhe aparecia vestindo uma túnica branca, flutuando sem ter pés e que, sem cerimônia, frequentava a casa delas e participava de muitos eventos familiares, observando a todos e comentando o que via com a menina, curioso que era, ainda participando da vida familiar, mesmo que ninguém além da neta, suspeitasse.
Ela só compartilhava esse segredo com a avó. Ao ouvir essas histórias, ela não desacreditava a neta, apenas fazia graça, ameaçando-a, docemente, com uma visita ao padre para que ele a estudasse.
Aliás, sendo católica fervorosa, cumpriu a ameaça arrastando-a para as missas e o estudo do catecismo que, apesar do esforço do padre e das catequistas, não “curou” a mediunidade da pequena vidente, embora os ensinamentos aprendidos tenham servido como base para a construção de sólida fé e confiança no divino, remédio e alívio para os dias de medo e dor que ainda viriam, segundo as premonições ditadas pela espiritualidade aos ouvidos da criança.
Hoje, a Sueli, enquanto me conta sua vida e em retrospecto, percebe como a avó, um certo dia, teve certeza de que, de fato, ela se comunicava com os mortos, especialmente com o seu marido Antônio e, confirmando a presença dele entre elas, chorou bastante de emoção e nunca mais duvidou quando a menina dizia que o avô dissera isso ou aquilo.
O que convenceu a avó foi justamente o que pensara usar para desmistificar as visões, pois lhe ocorreu perguntar, assim como quem não quer nada: então, Sueli, como teu avô te chama quando aparece? E a menina respondeu com tranquilidade: ele me chama de Nina.
A pergunta capciosa foi só para tentar provar que as visões se tratavam de uma fantasia da menina. Pensou que, como a menina não tinha como lembrar do avô no mundo físico, não haveria como ela saber que somente ele a chamava assim pois, quando faleceu, o apelido ficou esquecido por todos e nunca mais mencionado.
No entanto, ao ouvir a resposta certeira, a avó pode se convencer de que seu amado marido, seu companheiro de vida com quem deixou para trás sua pátria, vindo para o Brasil, a terra nova como diziam em Portugal, não a havia abandonado nem na morte e seguia protegendo sua gente.
Se Antônio falecera quando a pequena médium tinha vivido apenas um aninho e nunca mais ninguém a chamou de Nina, somente pela fala dele a menina poderia saber do doce apelido Nina.
A primeira neta era adorada pelo avô e, por talvez por isso mesmo, foi a escolhida para ser o instrumento de comunicação e irradiação do amor dele pela família para além da vida física. Certamente, havia outras razões para este canal entre os mundos, mistérios da divindade que os vivos não conseguem compreender.
Desde a menção do apelido Nina, a avó aceitou e apreciou ouvir as histórias que o marido falecido vinha contar, ele explicava para as duas como era a vida onde estava, o que ele fazia para além do véu físico, onde habitava e com quem se havia reencontrado na vida espiritual, pessoas essas que só a esposa conhecera em vida, mas tudo isso revelava, principalmente para a vó católica, que a neta não podia estar inventando ou delirando sobre o que relatava em segredo.
A presença etérea de Antônio consolava as duas, criança e idosa, pela alegre e comunicativa companhia, mas também pela certeza da existência de um lugar onde não há dor nem desengano.
Enquanto ouvia a neta recontar das saudades que ele sentia da terra natal e dos familiares que ficaram lá enquanto ele fazia a vida aqui, a avó relembrava os momentos de sua própria vida descritos pelo marido que flutuava em frente à neta e que ela mesma só podia rever nas recordações do doce companheiro desta vida.
Entendeu logo que a vidência da neta foi aproveitada por ele para estar perto dela própria e da filha difícil, mãe da Sueli, que o desgostava em vida porque tinha um mau gênio e vivia entregue ao vício do cigarro e da bebida, vícios condenados especialmente quando presentes nos hábitos das mulheres dos anos cinquenta e sessenta e que ele, desde o mundo espiritual, também desaprovava porque sabia bem onde isso ia dar. Mas essa é outra história.
Se ele a chamava Nina, a avó não podia mais duvidar que, tantos anos depois da partida, Antônio ainda se fazia presente na sua vida e que, mesmo no além, ainda era o mesmo homem protetor, que observava resignado os caminhos trilhados pela sua descendência toda, suas filhas, seus netos, sendo a neta a quem ele adorou em vida quem mais precisava dele para enfrentar a infância desafiadora e o que mais viria na vida adulta.
Acredito que ele soubesse das provações que vitimariam a neta logo no final da infância, muito maiores do que o enfrentamento da mediunidade precoce, sabia que seriam perdas dolorosas e a acompanhava para resguardar, pelo menos um pouco, a infância da menina e preparar o coração dela para garantir que teria a fibra de vencer sem desistir.
Assim, durante boa parte da infância da Sueli, o avô falecido fora seu amigo e conselheiro, contador de histórias e dono de uma alma muito amorosa e cândida, um contraponto com o mundo físico turbulento em que ela vivia e dores que ainda viveria.
Quando o avô foi chamado a evoluir para outra esfera espiritual, ele veio até sua amada Nina e dela se despediu, partindo para sempre de seu campo etéreo que ficou vazio deste afeto que ela recebia do pai de sua mãe, seu Antônio, português de coração doce, nome de santo e alma imortal.
Para aliviar a tristeza da despedida, Antônio explicou que ela não o veria mais, mas que ele ainda viria a observá-la e protegê-la, que apenas a forma das visitas iam mudar. O sofrimento da menina só não foi maior porque ainda tinha a avó ao seu lado, acudindo-a do sofrimento da curta vida e já tão penosa.
Ela e a avó se ressentiram deste abandono, já estavam acostumadas à presença do querido avô e marido. Antes de partir definitivamente, ele pediu que a Sueli cuidasse bem de sua amada esposa, o que fez a Anita reconhecer, mais uma vez, a verdade das visões da Sueli. Novamente a avó se comoveu profundamente, identificando na recomendação o amor que sempre recebeu dele, homem apaixonado, bom marido e avô benfeitor.
Com a partida dele para planos mais elevados de desenvolvimento no mundo espiritual, acabaram-se as histórias de Portugal, os contos de família sobre a riqueza na terra ancestral, o amor proibido entre ele e sua Anita pela diferença de classes sociais, a conquista de um lugar ao sol no Brasil, as pequenas e engraçadas intrigas familiares, a história de conquistas pessoais do casal que imigrou jovem e cheio de planos para construir uma vida melhor e outras tantas, que ela lembra até hoje e reconta às filhas para que honrem sua hereditariedade portuguesa.
Aliás, essa ancestralidade lusitana pulsa forte nas veias, no coração e na alma da Sueli, ela se orgulha de trazer em sua história tão difícil a têmpera deste povo desbravador e tradicional, gente aguerrida e forte, alegre na alma e triste no fado, canto triste que fala de perdas e saudades, também de amores e paixões, muito semelhante com a história desta família.
O patriarca desta descendência que frutificou em uma enorme família teve autorização para seguir seu trabalho por mais algum tempo ao lado daqueles a quem amou, todos frutos do seu afeto por Anita. Talvez tenha alcançado essa graça porque ainda tivesse algum compromisso inacabado com a família da qual foi a semente.
Ou, talvez, apenas por que tenha sido um ser de luz nesta encarnação e, por mérito, tenha recebido a chance de seguir ensinando à sua descendência o real senso de responsabilidade e empatia que o norteou na vida física. O conhecimento do plano evolutivo que cada um traz dentro de si e que se revela no transcurso da vida física pelas dores e pelos amores, esse é o grande prêmio para aqueles que aceitam com alegria o desafio da fé.
Para mim, o que o Antônio recebeu foi uma grande oportunidade, um verdadeiro presente. Eu, certamente, gostaria de poder ser orientação e ajuda para aqueles a quem amo desde outra dimensão, apontando caminhos, amparando na dor e vivenciando as vitórias.
Mas a principal bênção, é poder dar de herança a certeza da continuidade da vida, a concretude de um mundo espiritual paralelo ao físico o que, nada mais é, que uma lição de fé. Por mim, a tarefa de cuidar da neta e da família desde o céu foi uma enorme bênção que este homem honrado recebeu e entregou a seus amores .
Deve ter tido muito merecimento, porque observando a dura vida da neta nesta existência, ela ainda criança exposta à maldade humana e ao desabrigo dos cuidados maternos e paternos, vendo-a ainda tão pequena a enfrentar o mistério de viver entre os dois mundos, ele foi autorizado a vir em seu auxílio, conectando-se a ela, dando-lhe a conhecer a dimensão de seu dom e conduzindo-a para um lugar de aceitação e manejo discreto da sua capacidade de transitar de lá para cá.
Que avô gentil, protetor e benfazejo a espiritualidade providenciou para acompanhar a infância da menina Sueli, certamente para fazer a vida dela menos áspera e solitária.
O avô ao mesmo tempo a ensinava sobre o poder do amor e a necessidade de continuar sem perder a confiança no plano maior, condições que se imporiam como necessárias para o enfrentamento e a sobrevivência quando as duras provas que ainda viriam para ela, anunciadas sem sonhos terríveis, chegassem para colher sua mocidade e os sonhos de cursar medicina, fazendo com que ela se tornasse, muito jovem, a chefe da família que se despedaçaria sobrando apenas ela e um irmão menor, mas sempre com a presença dos irmãos de luz a guiá-la.
A Sueli conta sua história agora com suas filhas criadas, me diz que ela mesma já é avó. Ainda sofre pelas perdas que a vida lhe impôs, mas carrega no olhar a doçura que recebia da irradiação através do espírito sem pés que voejava pela casa de túnica branca divertindo sua infância, a candura do avô que a ensinou a rir um riso lindo e musical que brota com muita facilidade, ela ri alto e com vontade quando fala deste personagem incrível, o visitante do céu que a fez aceitar a mediunidade e usar esse dom para ajudar a quem precise de um conselho, de uma oração, de um direcionamento. E, principalmente, pela fortaleza construída por ele ao redor da menina, sua Nina, para que ela pudesse suportar as dificuldades que vivia e as que ainda viriam.
Mas isso também é outra história.
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